Por que somos a favor do Passe Livre Estudantil?

15/02/2019, às 11:13 (atualizado em 16/03/2019, às 22:57) | Tempo estimado de leitura: 12 min
Por Yuriê Baptista, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e do Movimento Nossa Brasília
Enquanto corta Passe Livre, governador do Distrito Federal alivia impostos para os mais ricos
Integrantes do Passe Livre fecham via em Brasília durante protesto contra o aumento das passagens, anunciado pelo governador Rodrigo Rollemberg (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Na última quinta-feira (7/2), o governador Ibaneis Rocha apresentou à Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) um projeto de lei que tem por objetivo restringir o Passe Livre Estudantil (PLE) somente a estudantes de escolas públicas e aos de escolas privadas que possuem renda familiar inferior a quatro salários mínimos, com o limite de 27 trajetos (ida e volta) no mês.

Como justificativa, o governador alega que a medida trará uma economia para os cofres públicos da ordem de R$ 115 milhões por ano. Desta forma, o custo anual do PLE, que em 2018 foi de R$ 273 milhões, com a nova proposta, diminuiria para R$ 158 milhões[1].

Paradoxalmente, enquanto busca reduzir despesas, através de outro projeto de lei enviado à CLDF, quer reduzir receitas com o corte de impostos. De um lado, deseja restringir um direito conquistado há 10 anos pelos e pelas estudantes do Distrito Federal, por outro, almeja cortar tributos das classes mais beneficiadas. Estima-se que tais reduções de impostos implicarão em uma perda de receita de R$ 240 bilhões[2] em 2020 – valor R$ 125 milhões superior à economia decorrente dos cortes a serem aplicados no Passe Livre Estudantil. Em 2021, a estimativa é de perda de arrecadação maior do que o valor necessário para custear todo o PLE, tal como ele funciona hoje.

O transporte é um direito social garantido no artigo 6º da Constituição Federal, assim como a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Além disso, o transporte é um direito essencial para a realização de outros direitos, ou seja, ele possibilita o acesso das pessoas aos equipamentos de saúde, de educação e de cultura, entre outros. Em síntese, o transporte público é crucial para que grande parte da população brasileira e do Distrito Federal acesse os serviços públicos. Garantir a sua gratuidade é uma forma de oportunizar que as pessoas mais desassistidas tenham acesso aos seus direitos, de forma a assegurar maior justiça social.

O Transporte Público Coletivo no DF

Os ônibus do transporte público do DF são geridos por cinco empresas que foram selecionadas em uma licitação realizada a partir de 2011. Esta licitação determinou o valor a ser recebido pelas empresas para transportar cada um dos e das passageiras, o que define o valor da tarifa bem como o subsídio do GDF ao sistema.

Dúvidas pairam sobre esse processo licitatório. Com efeito, decisão do Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT)[3], bem como relatório da CPI do Transporte Público[4] realizada pela CLDF, além de outros estudos[5], identificaram diversas irregularidades que beneficiam as empresas e oneraram a tarifa, fazendo com que o DF apresente a tarifa mais cara do país, impactando diretamente o custo do PLE.

As irregularidades apontadas se referem, por exemplo, à má qualidade do estudo que embasou o edital, se utilizando de dados irreais ou desatualizados da população, da rede viária e quilometragem a ser percorrida pelas empresas; à forma de pagamento às empresas, que estabelece um custo por passageiro transportado em vez de pagar por quilômetro rodado; à participação de empresas de um mesmo grupo econômico, o que era proibido expressamente no edital; à participação de um mesmo advogado na elaboração do edital, nos pedidos de elucidação, recursos administrativos e judiciais e ainda ser advogado de uma das empresas que concorreram (e venceram) o edital, dentre outras.

Destaque-se trecho do acórdão do TJDFT que alerta para as irregularidades citadas anteriormente:

O edital da Concorrência Pública nº 01/2011 continha disposição expressa que vedava a participação de empresas componentes do mesmo grupo econômico (…) Os documentos colacionados aos autos demonstram que as empresas Viação Pioneira e Viação Piracicabana estão umbilicalmente ligadas e fazem parte de um grupo econômico maior que tem como empresa matriz a Expresso-União (…) houve, de fato, ofensa ao interesse público e a terceiros na medida em que o certame beneficiou empresas que possuíam vínculo estreito com extraneus, extraneus este que participou da confecção do edital, estando igualmente ativo nas fases interna e externa da licitação, redigiu as atas de julgamento, bem como analisou as propostas e habilitações. Tal benefício impediu que outras empresas (no caso terceiros) pudessem concorrer de maneira igualitária no procedimento licitatório (…) as empresas vencedoras lograram êxito no certame apresentando tarifas muito próximas ou praticamente iguais às tarifas máximas previstas no edital, o que implica em prejuízo indireto eis que demais empresas, que apresentaram tarifas mais acessíveis, foram consideradas inabilitadas (..) em virtude da licitação ser viciada, após a fase de habilitação, somente um competidor permaneceu na disputa, sendo este justamente o que apresentou a tarifa mais cara, consoante ressaltado acima, inviabilizando por completo a essência da concorrência, onerando, por consequência, os cofres públicos e o bolso do cidadão que faz uso do transporte coletivo (páginas 2, 3 e 4 do acórdão)

Assim, o Tribunal determinou a realização de nova licitação até o final de 2019. Trata-se de uma oportunidade ímpar para que o GDF realize um processo transparente, com parâmetros que tornem o sistema mais eficiente, seguro e confortável, garantindo seu controle social, inclusive de seu custo.

Uma licitação nesses moldes contribuiria para tornar o transporte público menos custoso, o que, consequentemente, diminuiria o valor necessário para custear o Passe Livre Estudantil. O govenador Ibaneis Rocha deveria focar na melhoria da gestão e da operação do sistema ao invés de cortar direitos adquiridos após muita luta da população.

Impacto da redução de impostos

No projeto de lei 104/2019, enviado à CLDF também pelo governador, a proposta de redução dos impostos foi detalhada da seguinte forma:

  • ITBI: de 3% para 2,75% a partir da entrada da lei em vigor; 2,5% a partir de 2020 e 2% a partir de 2021;
  • ITCD: que varia de 4% a 6% será fixado em 4% independente da base de cálculo;
  • IPVA: de 2,5% para 2% (ciclomotores, motocicletas, motonetas, quadriciclos e triciclos) e de 3,5% para 3% (automóveis, caminhonetes, utilitários e demais veículos).

Estes impostos incidem diretamente sobre a propriedade. Quem os paga são as pessoas que possuem veículos automotores (IPVA), que compram e vendem imóveis (ITBI) e que recebem herança (ITCD). Ou seja, são cortes de impostos que beneficiam os mais ricos, que têm carros e propriedades ou que recebem heranças. Por outro lado, os cortes do PLE afetam todos os estudantes que dependem do transporte público para estudar.

Um simples exercício é bastante revelador dessa injustiça: com a redução de impostos, o proprietário de um automóvel de R$ 50.000 passaria a pagar R$ 1.500 de IPVA, ao invés dos atuais R$ 1.750 – uma pequena economia de R$ 250 por ano. Por outro lado, a supressão do Passe Livre Estudantil oneraria em R$ 3.240 anuais as famílias que precisam pagar ônibus para que um de seus filhos estude.

Entre os argumentos listados pelo governo, afirma-se que a desoneração dos impostos resultaria em menor inadimplência e, consequentemente, maior arrecadação. Porém, como podemos observar na tabela 1, a perda da arrecadação é crescente ao longo dos anos, conforme dados apresentados na própria justificativa do projeto.

A tabela 1 revela que em 2021 os valores não arrecadados em decorrência das desonerações, da ordem de R$ 327 milhões, seriam maiores do que o atual custo do Passe Livre Estudantil, que corresponde a R$ 273 milhões. E mais: os subsídios ao PLE vem diminuindo nos últimos anos, conforme pode ser observado na tabela 2, e poderiam ainda ser menores, caso a nova licitação diminua o custo do transporte público coletivo do DF.

Com o intuito de promover maior justiça, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em conjunto com diversas outras organizações, defende a progressividade da carga tributária, isto é, quem ganha mais paga mais impostos. O que o governador Ibaneis está propondo é exatamente o contrário, tira dos pobres e alivia a renda dos mais ricos.

O Inesc também defende a progressiva realização de direitos. Atuamos para que os direitos conquistados sejam ampliados e que mais direitos sejam garantidos.

As ações apresentadas pelo atual governador do DF ampliam desigualdades – entre pobres e ricso- e violam direitos dos estudantes. Acreditamos que existem outras maneiras de se reduzir as despesas do governo que não atentam diretamente contra os direitos conquistados, como o Passe Livre Estudantil. Acreditamos, ainda, que por meio de novo processo licitatório é possível reorganizar o sistema de transporte público local, melhorando a sua qualidade e reduzindo seus custos.

*Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

[1] Os dados apresentados na justificativa do referido projeto de lei são: custo PLE em 2018: R$ 299 milhões e R$ 185 milhões o custo após o corte do benefício. Porém, informações obtidas no Portal da Transparência do DF, acessado no dia 08/02/2019, mostram que o custo do PLE em 2018 foi de R$ 273 milhões.

[2] Conforme justificativa apresentada no PL 104/2019.

[3] http://cache-internet.tjdft.jus.br/cgi-bin/tjcgi1?NXTPGM=plhtml06&SELECAO=1&ORIGEM=INTER&CDNUPROC=20130110928920APO

[4] http://www.cl.df.gov.br/web/guest/encerradas/-/document_library_display/l0Ep/view/14482874?_110_INSTANCE_l0Ep_redirect=http%3A%2F%2Fwww.cl.df.gov.br%2Fweb%2Fguest%2Fencerradas%2F-%2Fdocument_library_display%2Fl0Ep%2Fview%2F12161846

[5] http://multimidia.fnp.org.br/biblioteca/documentos/item/723-estudo-evolucao-do-transporte-publico-no-df

[6] 270 reais por mês, considerando 54 deslocamentos mensais, apenas uma viagem casa-escola-casa por dia, com a tarifa de R$ 5,00.

Categoria: Artigo
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