Por que a política monetária interessa os defensores de direitos humanos? - INESC

Por que a política monetária interessa os defensores de direitos humanos?

21/09/2021, às 10:51 (updated on 12/08/2025, às 11:01) | Tempo estimado de leitura: 9 min
Por Nathalie Beghin Coordenadora da Assessoria Política do Inesc.
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Sabe-se muito pouco sobre política monetária para além de alguns economistas e dos técnicos do Banco Central (Bacen). Contudo, urge sua democratização, pois o impacto que ela causa é de grande monta. Não é possível alcançar justiça social, racial, regional e de gênero se a política monetária não for orientada para a realização de direitos humanos.

O que é a política monetária?

A definição convencional, e atualmente hegemônica, de política monetária entende que se trata de um conjunto de medidas adotadas para gestão da moeda nacional, e assim da taxa de juros, do credito e da inflação.

Uma inflação alta e persistente é problemática por diversas razões, mas, sobretudo, porque diminui o poder de compra das pessoas, especialmente dos empobrecidos. E mais, o brasileiro ainda convive com o fantasma da hiperinflação dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, quando os bens e serviços eram remarcados diariamente, pois a alta mensal de preços chegou a alcançar patamares acima de 80%.

A solução proposta pelo governo para controlar a inflação, no atual regime de política monetária, é aumentar a taxa de juros, pois assim se contém o consumo e o investimento. Com juros mais elevados, os consumidores diminuem sua demanda por crédito (cheque especial, empréstimos etc.), pois seu pagamento será mais caro. Situação semelhante acontece com os empresários, que deixam de tomar dinheiro emprestado para fazer investimentos. Menos produtos na praça e menos pessoas comprando resultam na diminuição dos preços e, consequentemente, da inflação.

O principal operador da política monetária é o Banco Central (Bacen) que tem como prioridade controlar a inflação e, para tanto, atua na taxa de juros seguindo as orientações e metas estabelecidas pelo Comitê de Política Monetária (Copom). O Copom é composto por diretores do Bacen. As diretrizes da política são definidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) que atualmente é integrado pelo Ministro da Economia, que é o presidente do Conselho, o Presidente do Banco Central e o Secretário Especial de Fazenda.

Quais são os problemas dessa política monetária?

Confunde o meio com o fim

Sem dúvida, o controle da inflação é extremamente relevante em sociedades complexas, pois seu impacto pode ser devastador tanto economicamente quanto politicamente e socialmente. Contudo, não pode ser um fim em si mesmo, mas um meio para um objetivo maior como a realização dos direitos humanos, central nos Estados de Direito. Esse é o caso do Brasil que inseriu na Constituição de 1988, no Artigo 6º, os direitos sociais como direitos fundamentais.

Não é representativa da população brasileira

Tanto os que tomam decisões quanto os que executam a política monetária são, na sua absoluta maioria, homens brancos e ricos com poucos conhecimentos ou interesse sobre as consequências sociais de suas ações. Esse fato associado a um objetivo único, o de controlar a inflação, tem, por vezes, efeitos perversos. Por exemplo, as atuais lideranças do Bacen insistem em aumentar juros, pois consideram que a atual inflação é decorrente de um excesso de demanda. . Juros altos significam menos crédito na economia, menos circulação de recurso e, portanto, mais recessão econômica. Também significa que é mais caro para o Estado se financiar via emissão de títulos públicos, que ficam mais caros.

Esses tomadores de decisão defendem, ainda, mais arrocho fiscal, isto é, mais cortes de gastos públicos, que, em sua opinião, só contribuem para inundar a economia de dinheiro e, consequentemente, pressionar a inflação para cima.

Essa combinação de juros em alta com medidas de austeridade tem resultado no aumento da fome, da pobreza, do desemprego, do desalento e do subemprego. E não tem contribuído para a retomada da economia.

É sabido que a atual alta de preços não decorre de excesso de consumo, pois o povo brasileiro está cada dia mais empobrecido e o Estado cada vez menos presente. As causas da inflação são essencialmente resultantes do aumento de custos de produção (elevação do preço do petróleo, das tarifas de energia, dos preços das matérias primas importadas por conta do cambio muito valorizado, entre outras razões).

Insensíveis às realidades das pessoas que sofrem, os dirigentes do Banco Central negam qualquer possibilidade de avaliar sua atuação, insistindo no erro e contribuindo para aumentar a pobreza e as desigualdades.

É capturado pelo setor financeiro

Em geral, os dirigentes do Bacen são provenientes do setor financeiro, que vem lucrando consideravelmente com a política de juros em alta. Apesar da crise econômica prolongada que se abate sobre o Brasil, esse setor aumenta seus ganhos de forma exponencial.

Tal captura é também responsável pelo Brasil ocupar lugar de destaque entre os países com maiores taxas de juros do mundo. Com isso, são impostas as pessoas taxas escorchantes, que podem passar de 150% ao ano, gerando um sistema de exploração por meio de crédito único no mundo.

Essa captura pelo setor financeiro é também responsável pelo debate em torno da independência do Banco Central, que nada mais é do que assegurar aos banqueiros uma blindagem contra as necessidades da população e permitir que as finanças e recursos coletivos sejam geridos de forma discricionária pelo andar de cima.

É racista e sexista

As consequências de uma política monetária que erra o alvo são dramáticas, pois a alta de juros para diminuir a quantidade de moeda em circulação pode resultar em aumento do desemprego, da pobreza e da desigualdade, além de piorar a situação financeira de famílias endividadas.

As pessoas mais atingidas por esses fenômenos são essencialmente negras e mulheres. Portanto, cada decisão do Banco Central redunda no enriquecimento de alguns poucos, os chamados rentistas, e no empobrecimento de muitos, aumentando as distâncias que separam negros de brancos, mulheres de homens e pobres de ricos.

Por que disputar a política monetária?

Vimos que a atual condução da política monetária é capturada pelo setor financeiro, não cumpre com os objetivos constitucionais, pois não é orientada para a realização dos direitos humanos, e acaba contribuindo para acirrar as desigualdades.

Há algo de muito errado nisso.

Diante da importância dessa política precisamos disputá-la para que de fato contribua para a inclusão econômica e social. Precisamos: (a) alterar o objetivo central da política visando primordialmente à realização de direitos humanos e tendo o controle da inflação como meio para tal. Portanto, a definição das taxas de juros deve estar a serviço da justiça e não da contenção da inflação ou da dívida pública; (b) abrir o Conselho Monetário Nacional à participação de ministros das áreas social e setorial bem como dos trabalhadores e dos movimentos e organizações da sociedade civil para que as vozes dos mais afetados por essa política sejam incorporadas nas suas decisões; (c) desenvolver atividades de formação em política monetária com o intuito de democratizar seu acesso a grande parte da população; (d) instituir cotas de gênero e raça nos concursos públicos do Banco Central e implementar a paridade de gênero e raça na diretoria do Bacen.

 

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Inesc reforça a defesa de justiça fiscal e direitos humanos em conferência internacional

02/07/2025, às 10:19 (updated on 02/07/2025, às 11:05) | Tempo estimado de leitura: 6 min
4ª Conferência da ONU sobre Financiamento para o Desenvolvimento ocorre nesta semana em Sevilha, na Espanha. Inesc participa dos debates.

A cidade de Sevilha, na Espanha, recebe entre os dias 30 de junho e 3 de julho a 4ª Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento (FfD4), promovida pelas Nações Unidas. O encontro é um marco no debate global sobre os caminhos para o financiamento justo e sustentável da Agenda 2030 e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

O Inesc está presente na conferência por meio de Nathalie Beghin, integrante do colegiado de gestão da organização e co-presidenta da Latindadd (Rede Latino-Americana e do Caribe por Justiça Econômica, Social e Climática). A participação reforça o papel ativo da sociedade civil na construção de uma nova arquitetura financeira internacional, baseada em justiça fiscal, transparência e direitos humanos.

Durante evento paralelo à conferência, Nathalie Beghin destacou quatro medidas centrais para garantir um sistema de financiamento mais justo:

  • Implementar tributação progressiva;
  • Fortalecer a transparência fiscal e o intercâmbio de informações entre países;
  • Eliminar incentivos fiscais ineficientes;
  • Taxar os super-ricos em escala global.

No entanto, a economista também expressou preocupação com os rumos da conferência. Segundo ela, a sociedade civil está profundamente insatisfeita com os resultados parciais da FfD4:

  • A participação social ficou aquém do necessário;
  • O documento final tem pouca ambição;
  • Os países do Norte Global reduziram compromissos importantes;
  • E os Estados Unidos se retiraram das negociações, após minar o processo.

“Há uma enorme aposta no setor privado, mesmo sabendo que ele historicamente não demonstra compromisso com a realização dos direitos humanos”, afirmou Nathalie Beghin.

Sociedade civil propõe novas convenções da ONU

Como resposta à crise de legitimidade e eficácia da atual arquitetura financeira internacional, diversas organizações da sociedade civil propuseram a criação de três Convenções-Quadro das Nações Unidas:

  1. Convenção de Cooperação Tributária Internacional (já em andamento);
  2. Convenção sobre Dívida Soberana;
  3. Convenção sobre Cooperação Internacional para o Desenvolvimento.

Mobilização nas ruas de Sevilha

Nos dias que antecederam a conferência oficial, milhares de pessoas participaram do Fórum da Sociedade Civil FfD4, com atividades autogestionadas e uma grande marcha pelas ruas de Sevilha, mesmo sob uma intensa onda de calor. Os protestos denunciaram o extrativismo colonial, os cortes na ajuda ao desenvolvimento e os gastos militares crescentes.

Essa é a primeira vez que uma conferência da FfD é realizada na Europa, o que amplia a visibilidade sobre a responsabilidade histórica dos países mais ricos no atual modelo econômico global. O objetivo central das conferências FfD é retirar o debate sobre financiamento das mãos exclusivas dos fóruns econômicos e ampliar o espaço de decisão democrática e multilateral.

Sistema financeiro global é excludente e injusto, afirma Nathalie Beghin

A rede Latindadd — que reúne 31 organizações em 14 países da América Latina e Caribe, entre eles o Brasil —  em coletiva de imprensa, apresentou uma dura crítica ao atual processo de negociação da 4ª Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento (FfD4), que segundo Nathalie Beghin, copresidenta da rede e membro do Colegiado de Gestão do Inesc, sofre com “falta de ambição, transparência e justiça”, sendo ainda condicionado pelos interesses das grandes potências e por mecanismos de governança financeira excludentes.

Beghin destacou a urgência de uma reforma no sistema multilateral, reforçando que o atual modelo global impede que os países do Sul tenham voz igualitária nas decisões. A crítica central foi dirigida à arquitetura financeira global, ainda dominada por poucos países, e à ausência de mecanismos democráticos e transparentes de resolução da dívida.

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