Territórios camponeses frente à mineração: olhares sobre a questão fundiária

06/10/2020, às 15:10 (atualizado em 07/10/2020, às 9:50) | Tempo estimado de leitura: 11 min
A terceira live do circuito “Mulheres amazônidas” teve como tema “Territórios camponeses frente à mineração: olhares sobre a questão fundiária”. O evento faz parte de uma série de quatro debates com representantes do sudeste do Pará que discutem suas lutas, desafios e conquistas diante da Covid-19.
Territórios camponeses frente à mineração

O sudeste paraense é uma região marcada pela presença de assentamentos rurais constituídos em um contexto de ocupação das terras pelo agronegócio e, mais recentemente, por mineradoras. “Temos uma região fortemente marcada pela territorialização camponesa. São mais de 500 projetos de assentamentos com milhares de famílias que lutam pela terra ainda hoje”, explicou Rose Bezerra, educadora e mediadora do debate.

Participaram como convidadas da live: Liliane Guimarães, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de Canaã dos Carajás; Andréia Silvério, advogada da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Marabá; e Lucilei Oliveira, docente da Universidade do Estado do Pará (UEPA). O evento contou, ainda, com as intervenções poéticas de Gracinha Donato, artista popular e militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e com a contribuição de Tatiana Oliveira, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

A luta pela terra e a queda de braço com a mineração

“Como fazer reforma agrária em um território que 70% dele é da Vale?”. Com esta pergunta Liliane Guimarães abriu sua fala e resumiu suas preocupações como militante pela reforma agrária. Ela é moradora do assentamento Eduardo Galeano, no município de Canaã dos Carajás e vizinho do Projeto Ferro Carajás.

Embora reconheça que seu assentamento não concentra uma grande quantidade  de conflitos como outros, o contexto em que vive é permeado por assédios, principalmente da mineradora Vale. “A gente vai vivendo, mas não é fácil. Quase todos os dias temos drones nos acampamentos e helicópteros sobrevoando. Hoje, foi um desses dias aqui”, relatou.

A dependência da mineração 

Militante do MST, Liliane ressaltou a dificuldade de construir a luta pela terra em um município originalmente agrário e hoje dominado pela mineração. “A Vale está na educação, na saúde e na cultura”, disse, traduzindo a sensação que é viver em uma cidade dominada social, cultural e economicamente pela empresa mineradora. “Para nós camponeses, até a liberdade de falar foi levada pelo capitalismo”, desabafou.

De forma complementar às reflexões de Liliane, Andréia Silvério, advogada da CPT, fez um panorama geral da luta pela terra na região entre Canaã dos Carajás e Parauapebas, onde há cinco projetos de mineração em operação.

“Isso gera, em certa medida, uma dependência do ponto de vista econômico, do município com relação à mineração. Sob o discurso de  enxergar que a mineração é a vocação do município, os próprios gestores municipais não investem em outras políticas econômicas e acabam abandonando alguns setores, como é o caso do que aconteceu com a agricultura familiar no município de Canaã dos Carajás”, pontuou.

A judicialização dos conflitos 

Para Andréia, há um crescimento assustador da demanda de assessoria jurídica por parte dos agricultores no processo de enfrentamento das mineradoras, em especial, a Vale. “Hoje, a assessoria jurídica da Comissão Pastoral da Terra faz o acompanhamento de pelo menos 40 ações possessórias no município de Canaã dos Carajás. Elas são referentes a cinco acampamentos localizados em áreas que também são reivindicadas pela mineradora Vale”. Esses cinco acampamentos abrigam 600 famílias.

A judicialização dos casos vem sendo provocada pela própria mineradora, que ingressou com pedidos de reintegração de posse das áreas ocupadas. “Então, em um primeiro momento, a atuação da CPT se dá na frente jurídica, para garantir, por meio da defesa dessas famílias, que não ocorressem despejo”, conta a advogada. A esse processo soma-se a criminalização das lideranças pela Vale, prática comum em outras partes do Brasi”l, denunciou Andreia. Em resposta, os agricultores têm investido em uma frente jurídica.

A apropriação de terras federais

Se em alguns casos a estratégia da Vale é comprar individualmente as terras dos agricultores, minando as possibilidades de articulação coletiva para a defesa de seus direitos, em outros, a estratégia é se apropriar das terras federais. “A Vale não compra apenas as terras em que se sabe da existência de um título, na verdade, a Vale acaba também se apropriando de áreas públicas federais, de áreas pertencentes a projetos de assentamentos, como é o caso do projeto Carajás 2 e 3”, relatou Andréia.

A CPT, juntamente com os agricultores, vem apresentando denúncias ao Instituto de Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sobre tais casos. Atualmente, está em processo um acordo entre o Incra e a Vale para realizar a compensação dessas áreas que foram apropriadas indevidamente pela mineradora e que são reivindicadas por agricultores.

Ambientalização do discurso da Vale

Andréia chamou atenção, ainda, para a ambientalização do discurso da Vale, que vende uma imagem de empresa preocupada com o meio ambiente e com o desenvolvimento sustentável. Para ela, esse discurso esconde uma atuação nos territórios que é predatória e prejudicial, não só à natureza, mas também aos trabalhadores rurais.

A advogada analisa que, junto com a judicialização dos conflitos sociais e com a criminalização dos movimentos, a ambientalização da imagem forma o tripé das estratégias da Vale na região.

Remoção forçada e o assédio das mineradoras 

Se por um lado está a dificuldade de conquista da terra em um contexto de apropriação do território pelas mineradoras e em especial pela Vale (como é o caso de Canaã dos Carajás), por outro está a remoção forçada de agricultores que já possuem os títulos de suas terras.

Em Ourilândia do Norte, o caso do projeto Onça Puma é emblemático nesta estratégia de remoção forçada das famílias com a finalidade de instalar projetos de mineração. Inicialmente de propriedade da empresa canadense Canico, hoje o projeto está nas mãos da Vale. Ele surgiu em 2000, em um contexto de diversificação da produção minerária no sul e sudeste do Pará, com o mapeamento do níquel, cobre, ouro e ferro em novas regiões.

A Canico começa o processo de prospecção mineral adentrando nos lotes dos agricultores do Projeto de Assentamento Campos Altos e abrindo uma frente de conflitos, relata a professora Lucilei Oliveira da UEPA. Mesmo com 240 famílias vivendo no assentamento, a mineradora iniciou um processo no Incra para alteração da finalidade do terreno de agricultura familiar para mineração. Ao mesmo tempo, comprou individualmente as terras dos agricultores.

Enquanto o Incra, em Brasília, descobriu uma série de irregularidades cometidas pela Canico, a empresa comprou individualmente 85 lotes (o restante, foi negociado coletivamente). Juntos, os trabalhadores rurais pedem na justiça a anulação das vendas que haviam ocorrido em 2003 e a reparação das famílias por danos socioambientais ambientais.

“O que a gente pode perceber com isso? Que a mineração é incompatível com o campesinato, é uma realidade que não consegue conciliar com os agricultores que estão no entorno, até porque, os danos ambientais são terríveis: aterramento de nascentes, contaminação das águas, contaminação do solo”, declara Luciei.

O projeto Onça Puma também atinge diretamente os índios Xikrin com a contaminação das águas do rio Caetés. “Os Xikrin, os Kayapó e tantas outras etnias… É o segmento que sem dúvida, desde o início dos anos 1980, tem sido sistematicamente violentado, e também resistindo”, apontou Rose.

Em resumo, “o cenário que a gente tem é o de uma mineração que quando se instala nos territórios, produz uma situação de zonas de sacrifício. Regiões que são destinadas à exploração econômica estritamente, sem considerar processos associativos, dinâmicas socioterritoriais, todo um processo de produção cultural e simbólica na relação entre seres humanos e natureza” conclui Tatiana, ao final do evento.

Acompanhe o circuito de lives e escute as mulheres amazônidas

Para saber mais sobre o sudeste do Pará, o contexto de mineração e as estratégias desenvolvidas pelas mulheres amazônidas para sobreviver a esse modelo econômico e à crise da covid-19, acompanhe o circuito de lives pelo site e pelo YouTube do Inesc.

A primeira live, “Mulheres amazônidas: a defesa dos territórios em tempos de crise” teve como tema a luta e a resistência das mulheres no contexto da pandemia e a mudança nas rotinas das atividades sociais e políticas. Já o segundo, De que lado a corda arrebenta? Os recursos da mineração e a desigualdade em tempos de pandemia, trouxe para o centro do debate a questão econômica, a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), o impacto econômico da mineração e a desigualdade. A próxima e última live acontece dia 13 de outubro.

Assista ao resumo da transmissão! O vídeo completo você pode conferir aqui.

Categoria: Notícia
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