Redução não é solução

27/09/2017, às 15:25 | Tempo estimado de leitura: 14 min
Jovens do projeto ONDA analisam a questão da idade penal. Para eles, o discurso a favor da redução se sustenta na lógica da punição e tem como alvo adolescentes negros/as e de periferia

Após pressão da sociedade civil organizada, foi adiada na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado a votação sobre a análise de quatro PECs (Propostas de Emenda à Constituição) que sugerem a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos no Brasil.

A matéria deve voltar à pauta da CCJ dentro de 30 dias. Diante dessa nova ofensiva, republicamos artigo escrito por então jovens do projeto Onda, em 2015 – quando a redução da maioridade penal foi aprovada na Câmara dos Deputados.

Naquela ocasião, eles defenderam que a responsabilização de jovens em conflito com a lei deve resguardar a reinserção na sociedade e a proteção integral do/a adolescente (negro/a e pobre), que já é violentado/a pelo Estado e pela sociedade, ambos marcados pela escravidão e pelo colonialismo.

Releia:

Idade Penal

Texto publicado originalmente na revista Descolad@s ano 5-2015/ nº 5

*Thallita de Oliveira Silva  e Israel Victor de Melo

O Brasil sentenciou, historicamente, a sua população negra à privação de direitos fundamentais, tais como o acesso à educação e à moradia. Na última década, o Estado brasileiro assumiu que há racismo em nosso país e, atualmente, tenta reparar sua história e estabelecer um patamar de igualdade racial. No entanto, os constantes ataques racistas se enveredam em diversos meios: no futebol, na TV, no jornalismo, na literatura, no cinema. A rede de internet tem oferecido um vasto espaço para a disseminação de discursos de ódio, intolerância e preconceitos.

Em 1988 o Brasil promulgou a atual Constituição Federal. Dois anos depois deu um importante passo para a efetivação de direitos, com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que surgiu com um novo paradigma: Doutrina da Proteção Integral. A partir daquele momento, as crianças e os adolescentes passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos. De igual forma, tanto a família quanto a sociedade e o Estado devem garantir plenoacesso a todos os direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade eà convivência familiar e comunitária.

O grande salto foi que a legislação passou a não distinguir mais crianças ricas de crianças pobres, antes tidas como menores, porque todas são iguais perante a lei, sendo que os direitos e as medidas devem ser iguais para todas as crianças e os adolescentes do Brasil. Dito isso, cabe questionar a forma com que tratamos os e as adolescentes em conflito com a lei, pois o que se vê é que há diferença entre o tratamento de “menores em conflito com a lei” e “adolescentes de classe média/alta que cometem delitos”, resquícios de uma história de exclusão e limpeza social.

Não é à toa que bastaram três anos após a promulgação do ECA para que parte do parlamento, em resposta, apresentasse a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de redução da idade penal, também conhecida como PEC nº 171/1993, de autoria do deputado Benedito Domingos, do extinto Partido Trabalhista Reformador (PTR-DF).

O discurso a favor da redução, que tenta se sustentar na lógica da punição e vingança, é odioso e tem direção evidente, pois sabemos que a maioria dos e das adolescentes em conflito com a lei é negra e de periferia (isso considerando os e as adolescentes que estão institucionalizados). O ECA, no seu quarto capítulo, já estabelece medidas socioeducativas para adolescentes que cometem atos infracionais. Elas têm como função responsabilizá-los/as pelos próprios atos e ainda educá-los/as para o convívio social. Mesmo assim, os discursos odiosos e intolerantes difundem-se amplamente, pedindo penas mais duras e punições iguais às dos adultos. Em 2012, foi aprovada a lei que institui o Sistema

Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), que regulamenta a execução das medidas socioeducativas. No mesmo ano, a PEC nº 33/2012, de autoria do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), também foi apresentada: ela objetiva alterar os artigos 129 e 228 da Constituição, acrescentando um parágrafo que prevê a possibilidade de desconsiderar a inimputabilidade penal de maiores de 16 anos e menores de 18 anos, caso em que será o juiz quem decidirá se o/a adolescente tem capacidade para responder pelos seus atos.

Pesquisas mostram que menos de 1% dos crimes cometidos são da autoria de adolescentes. Os estudos comprovam, ainda, que os crimes realizados por adolescentes não são, em sua maioria, hediondos. Além disso, os dados apontam que o índice de reincidência é menor do que o prisional. Por fim, os pesquisadores constatam que a redução da idade penal não é solução.

Neste sentido, o sistema prisional brasileiro se sustenta na “punição”, cujos slogans mais conhecidos são os seguintes: “bandido bom é bandido morto” e “polícia boa é a militarizada e truculenta”. Por outro lado, o ECA e o Sinase objetivam garantir que haja a responsabilização, mas que, sobretudo, sejam resguardadas a reinserção na sociedade e a proteção integral do/a adolescente (negro/a e pobre), que já é violentado/a pelo Estado e pela sociedade, ambos marcados pela escravidão e pelo colonialismo. Obviamente, reduzir a idade penal não responde à Doutrina de Proteção Integral. Enjaular adolescentes, juntamente com pessoas muito mais experientes em criminalidade, é tirar a oportunidade de que meninas e meninos revejam seus atos e produzam coisas boas: arte, cultura, conhecimento…, pois é esse o potencial que cada um deles e cada uma delas têm. Reduzir a idade penal é desistir desses adolescentes e não acreditar em seu potencial de mudança, de transformação.

Entenda porque devemos falar “adolescente” e não“menor”

De acordo com Érika Piedade da Silva Santos, em “(Des)construindo a ‘menoridade’: uma análise crítica sobre o papel da Psicologia na produção da categoria ‘menor’” (2004), desde o Brasil Império, a expressão “menor” é utilizada no contexto jurídico em referência às penas aplicadas aos “menores de idade”. No entanto, no final do século XIX, a expressão foi absorvida pela sociedade para designar crianças de camadas sociais mais baixas da pirâmide social. Ou seja, segmentam-se certos setores sociais, diferenciando algumas crianças (das classes média e alta) de outras em situação irregular (pobres, negras), consideradas suspeitas e potencialmente perigosas para a sociedade, além de um risco social de ruptura da ordem. Essa assimilação fixou-se com a Doutrina da Situação Irregular, instaurada pelos dois Códigos de Menores que existiram no Estado brasileiro (em 1927 e em 1979). Ambos os códigos registravam o termo “menores” dando-lhe o sentido de meninos abandonados ou delinquentes, e estes seriam o alvo de tutela do Estado.

O Estado passa a tutelar as famílias pobres. Assim, crianças e adolescentes de ambos os sexos (pobres, negras/os) consideradas/os abandonadas/ os eram inseridas/os em instituições filantrópicas: abrigos. Aquelas/es jovens que eram consideradas/os delinquentes eram internadas/os em reformatórios. Chamamos esse movimento de higienização, limpeza social, cuja ideia é retirar esses meninos e essas meninas pobres da rua. Não se considerava a hipótese de que seus pais precisavam trabalhar para alimentar seus/suas filhos/as. Não se considerava o fato de que a criança que estava na rua pedindo comida ou dinheiro era porque em casa estava passando fome, necessidade… Nada disso importava. Esses meninos e essas meninas eram considerados/as potencialmente perigosos/as e causavam medo à população.

Agora, preste bem atenção: eram esses meninos e essas meninas que eram considerados/as menores. Os meninos ricos e as meninas ricas que estavam estudando, praticando esportes e tendo acesso à cultura eram crianças e adolescentes. E qual era a cor desses/as “menores”? Como é sabido, em sua maioria avassaladora, meninos e meninas negros/as, mesmo depois da “libertação” da escravidão, não tiveram garantidos seus acessos à moradia digna, à alimentação adequada, ao emprego digno, à educação de qualidade. Foram jogados/as para fora das senzalas com um “se virem!”. Esse povo se manteve resistente, mas as forças estatais não abdicaram de continuar violentando-o, e a questão da menoridade é uma dessas violências. A construção e a manutenção (até hoje!) deste termo explicitam nosso racismo, nossa segregação, nossa exclusão e nossos preconceitos.

Os meninos e as meninas burgueses/as e brancos/as não estão no sistema socioeducativo ou pouco estão, porque este não é o grupo que a sociedade quer prender, enjaular, excluir, vingar, tornar abjeto. Portanto, pense bem em qual termo utilizar, pois sua escolha pode ser excludente e preconceituosa.

Entenda o que são medidas socioeducativas antes de questioná-las

De acordo com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), medidas socioeducativas são medidas aplicáveis a adolescentes autores/as de atos infracionais e estão previstas no art. 112 do ECA. Apesar de configurarem resposta à prática de um delito, apresentam um caráter predominantemente educativo. Elas são aplicadas a adolescentes de 12 a 18 anos. Alguns exemplos:

Advertência: é uma repreensão judicial com o objetivo de sensibilizar e esclarecer o/a adolescente sobre as consequências de uma reincidência

infracional.

Obrigação de reparar o dano: ressarcimento por parte do/a adolescente do dano ou prejuízo econômico causado à vítima.

Prestação de serviços à comunidade: realização de tarefas gratuitas e de interesse comunitário por parte do/a adolescente em conflito com a lei, durante um período máximo de seis meses e por oito horas semanais.

Liberdade assistida: acompanhamento, auxílio e orientação do/a adolescente

em conflito com a lei por equipes multidisciplinares por um período mínimo de seis meses, objetivando oferecer atendimento nas diversas áreas de políticas públicas, como saúde, educação, cultura, esporte, lazer e profissionalização, com vistas à sua promoção social e de sua família, bem como inserção no mercado de trabalho.

Semiliberdade: vinculação do/a adolescente a unidades especializadas, com

restrição da sua liberdade e possibilidade de realização de atividades externas, sendo obrigatórias a escolarização e a profissionalização. O/a jovem poderá permanecer com a família nos finais de semana, desde que autorizado/a pela coordenação da unidade de semiliberdade.

Internação: medida socioeducativa privativa da liberdade, adotada pela autoridade judiciária quando o ato infracional praticado pelo/a adolescente se enquadrar nas situações previstas no art. 122 (incisos I, II e III) do ECA. A internação está sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito

à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. A internação pode ocorrer em caráter provisório ou restrito.

Para mais informações, acesse o link: http://www.tjdft.jus.br/cidadaos/infancia-e-juventude/informacoes/medidas-socioeducativas-1/tipos-de-internacao

* Thallita de Oliveira Silva e Israel Victor de Melo são do projeto Onda

Vamos falar sobre Crianças, Adolescentes e Jovens?

Categoria: Notícia
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