Projetos culturais na Cidade Estrutural recebem jovens em situação de risco

15/08/2017, às 15:06 | Tempo estimado de leitura: 28 min
Mesmo sem recursos e apoio, associações proporcionam a crianças da Estrutural acesso a atividades esportivas e culturais.

or Daniel Marques Vieira, no Correio Braziliense.

Às margens do maior lixão a céu aberto da América Latina, diversas crianças entram em uma modesta construção. Sobre o muro, uma placa indica: Associação Viver — serviço de convivência e fortalecimento de vínculos para crianças e adolescentes. Enquanto isso, os pais se dirigem à entrada do aterro voltada aos catadores, a não mais que 20m de distância da instituição. Na placa, a imagem de duas crianças felizes brincando. No muro ao lado, os dizeres “(é) lixo, mas pode chamar de emprego, oportunidade, sustento e dignidade”.

A Cidade Estrutural teve sua população originada de um chamariz distinto. O setor habitacional surgiu da procura por melhores condições de vida pelos catadores de lixo, atraídos pela proximidades do aterro sanitário do DF. Contudo, mesmo décadas depois de seu nascimento, e prestes de ter o Lixão desativado, a população ainda sofre com o abandono.

No ano passado, a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) mostrou que a Estrutural ainda é a cidade com a população mais pobre em todo DF, com renda familiar média de R$ 2.004 e renda per capita de R$ 521,80 —  menos de um salário mínimo. E pior: a pesquisa revelou que quase metade da população começou, mas não terminou o ensino fundamental.

É nesse cenário que se estabeleceram organizações sociais e culturais como a Associação Viver, que há 20 anos cuida de mais de 300 crianças em situação de vulnerabilidade social. Elas atuam dando uma opção para as crianças que antes passavam o tempo do contraturno escolar revirando o lixo, à procura de recicláveis. Em vez disso, hoje elas podem participar de atividades esportivas e culturais, como aulas de flauta e violão.

Segundo Patrícia Oliveira Campos, pedagoga que atua no projeto, a ação da organização tem se mostrado essencial no combate ao trabalho infantil. “Aqui nós temos, por exemplo, três crianças, irmãos, que moram só com o pai, porque a mãe foi assassinada há alguns anos. Como o pai trabalha no Lixão, eles acabam ficando sem muito cuidado”, conta.

Outras organizações da região também atuam de forma semelhante. É o caso das ONGs Tia Angelina e do Coletivo da Cidade, formado há seis anos por Coracy Coelho Savant e outros 15 voluntários. “A educação é essencial para o desenvolvimento humano e, aqui na Estrutural, há um índice altíssimo de evasão escolar muito ligada ao trabalho infantil”, lamenta Coracy. A organização tenta driblar essa realidade unindo profissionais e projetos de diversas áreas em em prol da defesa das crianças e adolescentes.

O Saúde Integral faz parte dessa parceria e reúne três projetos de extensão da graduação e pós da UnB na área de saúde. Uma vez por semana, profissionais e estudantes prestam atendimento e fazem o encaminhamento de pacientes no espaço disponibilizado pelo Coletivo da Cidade. A dentista e estudante de pós-graduação da UnB, Rosa Harumi, 48 anos, destaca que a atenção dada à saúde na própria cidade dos pacientes é de extrema importância. Mas destaca que a falta de recursos atrapalha outras ações. “Uma vez conseguimos que o Hospital Universitário de Brasília disponibilizasse atendimento oftalmológico para as crianças do projeto, mas, devido ao custo do deslocamento, as mães não puderam levar o seus filhos até lá”, conta Harumi.  O direcionamento de crianças aos projetos citados é feito pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS).

Apesar de não ter nascido na capital federal, Jhosué Jefferson Delfino, 25 anos, é um autêntico brasiliense, filho de pais vindos do Nordeste. Há cerca de 24 anos, o pai de Jhosué viu no lixão da Estrutural uma oportunidade de trabalho. Quando mais novo, Jhosué acompanhava o pai na coleta de material reciclável. Contudo, a vida ganhou um destino diferente quando, há 11 anos, descobriu o Instituto Reciclando Sons. Criado pela musicista Rejane Pacheco, o projeto leva educação musical para crianças e jovens.

Rejane relata que, na instituição, a música é trabalhada como alternativa para resolução dos problemas sociais que afligem a região. Para a musicista, mesmo quando o aluno não segue a carreira musical, o estudo da música e a participação no projeto ajudam a desenvolver características essenciais para a ascensão social dos jovens.

É o caso de Jhosué, que, graças à instituição, entrou em contato com a produção audiovisual e hoje já consegue enxergar um futuro na área. Junto de outros dois alunos da instituição, Jhosué foi aprovado neste ano para a graduação em música na Universidade de Brasília (UnB) e pretende atuar na produção audiovisual de eventos musicais.

Os outros dois alunos aprovados na UnB também vêm de uma trajetória de superação e sucesso. Rejane conta sobre o caso de Damon Eric Pacheco, 20 anos, e Arthur Douglas dos Anjos, 24, alunos da instituição que, em 2016, foram convidados a fazer intercâmbio na Accademia Nazionale di Santa Cecilia. A academia é uma das instituições musicais mais antigas do mundo, fundada em 1585 e sediada em Roma. “Lá eles tocaram na orquestra e cantaram no coral da instituição”, conta Rejane, com orgulho.

Problemas financeiros

Atrás dos portões do Instituto Reciclando Sons, cerca de 20 pessoas ensaiavam uma peça musical cheia de referências brasileiras, obra do compositor brasileiro Marcos Leite. Logo ao lado, numa pequena sala onde os instrumentos são guardados, duas alunas treinavam fraseados sonoro nos violoncelos. Conjugado ao salão principal, uma área de estudos, com estantes repletas de livros didáticos. O ambiente ainda conta com uma sala de aula, um escritório e uma cozinha, onde as quatro refeições oferecidas aos alunos são preparadas. Tudo isso em uma área de apenas 170 metros quadrados.

Apesar da versatilidade do ambiente impressionar, esse racionamento não é o ideal. Há dias em que até 80 alunos têm aula ao mesmo tempo, conta Rejane. “Uma vez por mês fazemos uma apresentação e uma conversa com a comunidade para entender suas necessidades. O espaço fica muito cheio, não tem condições de receber tantas pessoas”. De acordo com a fundadora, a instituição não tem recursos suficientes para uma expansão. Por isso, faz campanha de financiamento coletivo para custear a construção de uma nova sede.

Outras instituições também têm enfrentado desafios para sobreviver e precisam traçar estratégias de captação de recursos. No Coletivo da Cidade, por exemplo, todo o dinheiro vem de doações, bazares beneficentes e também de campanhas online de financiamento coletivo. A pedagoga Patrícia Oliveira conta que atividades como o futebol e o balé, antes oferecidos na instituição, ficaram prejudicadas por falta de voluntários que oferecessem os serviços.

Outro exemplo é o Projeto Educar Dançando, que se destaca não só na Estrutural, como também em Planaltina e outras cidades. O projeto já foi tópico de reportagem do Correio, em 2013, quando os jovens Glauber Lucas Mendes Silva e Matheus Vaz Guimarães, alunos da instituição, foram selecionados para cursarem o ensino superior em dança em instituições renomadas na Alemanha. Em 2017, segundo a diretora artística do projeto, Edna Carvalho de Azevedo, ainda não foram realizadas aulas devido à falta de apoio financeiro. “Nós costumávamos buscar os alunos na Estrutural e levar até o local das aulas, na Asa Norte, mas, sem o apoio do governo para o transporte, ficamos impossibilitados de continuar nosso trabalho”, conta Edna.

No início de julho tomou posse um novo administrador regional da Estrutural e do Setor Complementar de Indústria e Abastecimento (SCIA), Melquisedeque da Silva Portela. Em entrevista ao Correio, o administrador afirmou que, agora que o Lixão será desativado, o maior desafio será garantir que a população esteja capacitada para sobreviver de outras atividades. “Nesse processo, a educação é de fundamental importância, já que a Estrutural é uma área de população carente”, declarou.

 

Conheça, ajude!

Coletivo da Cidade

Atividades no contraturno escolar para crianças e adolescentes, acompanhamento de saúde

Como participar: Pelo CRAS ou direto na instituição

Como ajudar: participar do financiamento coletivo ou participação como voluntário

Endereço: Quadra 3, Conjunto 11, Área Especial 2, Estrutural

Telefone: 3465-6351.


Associação Viver

Atividades no contraturno escolar para crianças e adolescentes, jiu-jitsu e música

Como participar: Pelo CRAS

Como ajudar: Doações ou voluntariado.

Endereço: Quadra 15, Conjunto C, Setor Oeste, Estrutural

Telefone: 3361-9357.


Centro Social Comunitário Tia Angelina — Polo Tia Nair

Creche e atividades no contraturno escolar

Como participar: Inscrição pelo CRAS

Como ajudar: Doações em dinheiro, alimentos, roupas e equipamentos de informática. Aceitam voluntários

Telefone: 3465-4696

Endereço: Quadra 1, Conjunto 10, Lote 9, Setor Norte, Estrutural.


Instituto Superar

Reforço escolar e aulas de jiu-jitsu.

Como participar: Ir até o projeto ou procurar o CRAS

Como ajudar: doações pelo site do projeto. Aceitam voluntários

Telefone: 99872-2526

Categoria: Notícia
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