Cooperação Internacional e golpe parlamentar: novo desafio, nova perspectiva

31/10/2016, às 17:12 | Tempo estimado de leitura: 20 min
Por Paulo Maldos, do Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais - CAIS.

Início dos anos 70 do século 20, auge da ditadura militar no Brasil. Nos campos e nas cidades reinava a paz dos cemitérios. Trabalhadores rurais e trabalhadores urbanos viviam quase como escravos nas fazendas e nas fábricas, a política estava abolida das conversas cotidianas, o noticiário explorava as práticas esportivas, as igrejas pregavam a vida depois da morte. Que estava por toda parte. Nas prisões, com milhares de presos políticos, nas câmaras de tortura, a morte imperava soberana e seu poder transbordava para o dia a dia da sociedade brasileira.

Aos poucos, uma rede de pequenos coletivos populares foi se formando por todo o país, muitos chamados de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), outros de Comissões de Fábrica, outros de Clubes de Mães, outros de Roça Comunitária. Surgiam para refletir sobre a situação concreta da população e para realizar pequenas ações políticas e sociais que aliviassem um pouco o sofrimento cotidiano.

Um general, um dos principais articuladores do golpe de Estado de 1964, estava atento a tudo isso. Seu nome era Golbery do Couto e Silva, sua especialidade era a atividade de “inteligência”, ou a antecipação de cenários para a atuação militar. Este analista logo percebeu que algo estava errado no país, um excesso de silêncio para uma população sempre extrovertida, um conjunto grande de problemas vividos sem canal para se expressar. Em 1972 formulou sua hipótese e sua proposta: “Ou mudamos algo, ou terminaremos todos pendurados num poste.” Explicou que “quanto mais você concentra o poder, mais ele perde força real e, por outro lado, gera um núcleo de contra-poder forte.” O estrategista militar explicitou sua proposta: a ditadura deveria imediatamente tomar a iniciativa de uma “abertura lenta, gradual e segura”. Esta estratégia foi, pouco depois, colocada em prática pelos militares.

Agências de cooperação internacional: parcerias por uma sociedade mais justa

Na medida em que a rede inicial de coletivos populares se expandia e se fortalecia, espaços institucionais iam se abrindo lentamente, a liberdade de reunião e de expressão era exercida de forma controlada, vigiada, mas num crescendo de participação popular. Esta participação ia transformando a rede em movimentos populares locais, logo regionais e, em poucos anos, em movimentos populares nacionais. Este percurso também não foi feito de forma espontânea, mas acompanhada, apoiada e refletida por militantes, por religiosos, por estudantes, por intelectuais e por profissionais em busca de alternativas de atuação.

Na medida em que a rede inicial de coletivos populares se expandia e se fortalecia, espaços institucionais iam se abrindo lentamente, a liberdade de reunião e de expressão era exercida de forma controlada, vigiada, mas num crescendo de participação popular. Esta participação ia transformando a rede em movimentos populares locais, logo regionais e, em poucos anos, em movimentos populares nacionais. Este percurso também não foi feito de forma espontânea, mas acompanhada, apoiada e refletida por militantes, por religiosos, por estudantes, por intelectuais e por profissionais em busca de alternativas de atuação.

Além disso, este novo cenário que foi sendo desenhado teve a contribuição determinante de um sujeito político discreto, porém muito presente e atuante: as agências de cooperação internacional. Os representantes desta cooperação eram normalmente pessoas que conheciam muito bem nosso país e nosso povo; tinham laços de confiança com coletivos populares ou instituições como igrejas ou pequenos centros de pesquisa. Muitas vezes eram estrangeiros que viviam há muito tempo no Brasil, radicados aqui com suas famílias. Através destes laços de confiança e de identidade política que pequenos projetos eram elaborados e os recursos eram distribuídos.

Nos países europeus, então vivendo o Estado de Bem Estar Social, a sensibilidade para a situação de opressão nas ditaduras latino-americanas facilitava a captação e doação de recursos expressivos para os grupos que realizavam trabalho popular. A cooperação internacional tinha suas instituições, algumas vinculadas à Igreja Católica, outras às Igrejas Luterana, Presbiteriana, Anglicana e demais igrejas históricas; outras ao movimento sindical; outras a setores leigos independentes, ambientalistas, socialistas etc Estas instituições também passaram a apoiar a criação de centros de assessoria, investigação e ação social, cujo papel era dar suporte e qualificação política para os grupos e dirigentes dos movimentos sociais emergentes – e para que estes criassem suas próprias instâncias nacionais e seus respectivos escritórios e estruturas nacionais. Assim surgiram as entidades de apoio (futuras ONGs) e os movimentos populares com expressão nacional.

Logo as agendas destas entidades de apoio e dos movimentos populares passaram a se utilizar de conceitos e referências novas: formação política de dirigentes e de massa; planejamento estratégico e indicadores de resultado; metodologia de trabalho popular e sindical; história da sociedade e história do Brasil; ferramentas para a transformação da realidade; educação popular; comunicação popular etc.

Fim da ditadura e início da democracia: parcerias renovadas

Estamos avançados nos anos 80, a ditadura está enfraquecida e continua seu processo de retirada de cena de maneira “lenta, gradual e segura”, os movimentos populares vão ocupando cada vez mais a cena política do país, com suas próprias lideranças, com seus próprios métodos de organização e ação. As agências de cooperação internacional acompanham todo este processo, contribuindo de forma definitiva para dar condições operacionais para as entidades de apoio, assim como para viabilizar as estruturas do movimento popular organizado; contribui muito também para os processos formativos e de educação popular gestados pelas entidades e movimentos, em nível local, regional e nacional. Os representantes das diferentes agências de cooperação internacional continuam com laços fortes de confiança com as lideranças locais, sendo que as decisões sobre estratégias de luta; capacitação das lideranças; organização das entidades e movimentos populares, são compartilhadas, assim como o planejamento estratégico e as possibilidades de distribuição dos recursos destinados ao trabalho político e organizativo.

A segunda metade dos anos 80 foi marcada, no Brasil, por um processo de dimensão histórica: a eleição do Congresso Constituinte e a elaboração da nova Constituição Federal. Em 1987 os movimentos populares e sindicais, urbanos e rurais, e as entidades da sociedade civil de todo o país tiveram seus olhos voltados para Brasília, para o Congresso Nacional, mais especificamente para a agenda e cronograma das comissões e sub-comissões onde se debatia e se definia os conceitos e os termos da nova Carta do país. Atentos ao caráter histórico deste processo, milhares de militantes, dos mais variados movimentos e entidades, rumaram para Brasília para, no Congresso Nacional, participar ativamente de debates com deputados e senadores, buscando a construção a muitas mãos de uma nova Constituição, radicalmente democrática, que contemplasse as contribuições e esperanças da experiência coletiva em mais de uma década de lutas populares de base.

Embora muito do que foi trazido pelas caravanas populares não tenha sido assimilado pelos deputados e senadores na nova Carta, esta sem dúvida expressa o “espírito da época”, abrindo caminho para uma nova fase política no Brasil, marcada principalmente pela democratização do Estado; pela participação e controle social; pela criação de conselhos e realização de conferências; pela elaboração participativa de políticas públicas; pela participação direta dos cidadãos e cidadãs nas instâncias do poder municipal, estadual e federal; pela construção de parcerias entre o Estado e as entidades da sociedade civil e do movimento popular.

Este novo cenário teve, certamente, um sujeito político discreto e sempre presente, uma parceira fundamental na criação, desenvolvimento, enraizamento, visibilização e qualificação dos movimentos populares e de seus dirigentes: as agências de cooperação internacional, às quais se deve um reconhecimento por sua contribuição, indireta porém significativa, para o caráter democrático da Constituição Federal de 1988 e sua posterior implementação.

No período pós-Constituição de 1988, o Brasil viveu uma experiência democrática intensa, com forte participação direta da sociedade na formulação de políticas públicas e de sistemas estatais para a implementação destas políticas, alicerçados em novos espaços institucionais com representação paritária governamental e da sociedade civil, espaços estes de monitoramento, avaliação e planejamento de uma ampla gama de programas sociais.

Embora tenham ocorrido em todos os governos do período democrático, os últimos quatro mandatos presidenciais, do presidente Lula e da presidenta Dilma, foram marcados pelo aprofundamento destas novas formas de criação, monitoramento e implementação das políticas públicas, com a co-responsabilidade das entidades da sociedade civil e dos movimentos populares na gestão de recursos públicos significativos. Participação social no PPA (Plano Plurianual), na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e na execução orçamentária; processos conferenciais,; conselhos de direitos; comissões temáticas; espaços e mecanismos de diálogo; secretarias de participação social nos ministérios; mobilizações sociais e interlocução com gestores públicos, todas estas novas formas de interação e de participação social foram experimentadas nestes últimos 13 anos de governo federal, com bons resultados em termos de democratização das decisões políticas e da gestão dos recursos públicos.

O conjunto deste cenário contemplava parcialmente as expectativas e esperanças históricas das agências de cooperação internacional, no sentido de melhoria das condições de vida da população brasileira e da democratização do Estado com participação social. Devido à redução dos recursos disponíveis da cooperação internacional; devido ao surgimento de outras áreas prioritárias para a cooperação no mundo, mas também devido ao fato de que o Brasil vinha superando sua condição de país com ampla parcela da população na pobreza extrema e na exclusão social, as agências de cooperação internacional no Brasil vinham buscando campos específicos para a atualização da sua missão institucional.

Neste sentido as agências passaram a se dedicar em apoiar projetos específicos de segmentos vulneráveis; projetos situados em regiões empobrecidas e de pouca presença do Estado; projetos de visibilização de questões sociais pouco conhecidas; projetos de formação e capacitação de gestores de ONG’s, dioceses e pastorais sociais; projetos de comunicação social alternativa à mídia hegemônica; processos de articulação e reflexão em torno de temas que interessam aos setores populares e aos parceiros, tais como mudanças climáticas; 4 agroecologia; produção orgânica; tecnologias sociais e projetos exemplares com potencial de replicabilidade.

Golpe parlamentar: democracia e legado civilizatório sob risco

Este cenário político democrático, que vem sendo construído ao longo das últimas décadas, a partir das lutas contra a ditadura; da emergência de novos sujeitos políticos; da Constituição Federal de 1988; das experiências de criação de espaços, processos e instâncias de participação social; da produção de políticas públicas e novos sistemas nacionais para sua implementação, com controle social; todo este cenário político democrático está a ponto de ser desmontado com o golpe parlamentar ocorrido no Brasil.

As elites políticas e econômicas, que se encontravam fora do centro de poder nos últimos anos, se insurgiram contra o pacto governamental estabelecido desde 2003 e planejaram o golpe parlamentar que acaba de destituir a presidenta eleita Dilma Rousseff, encerrando assim o ciclo de 13 anos de um projeto democrático-popular no Governo Federal do Brasil.

Porque afirmamos que é um golpe parlamentar o que ocorreu? Trata-se de um golpe parlamentar por que ele atende a formalidade do processo de impeachment, no sentido de cumprir com os procedimentos constitucionais previstos, culminando com uma votação política pela maioria absoluta do Senado Federal, porém com um conteúdo jurídico precário, que não prova em nenhum momento a existência de um crime de responsabilidade por parte da presidenta Dilma Rousseff. Ou seja, condenou-se e afastou-se uma presidenta da República por que se formou uma maioria parlamentar eventual na Câmara e no Senado Federal, mas não por que, do ponto de vista jurídico, se provou qualquer crime por parte da autoridade maior do país. Num regime presidencialista como o brasileiro, o impeachment teria que reunir causas políticas e jurídicas para o afastamento da presidenta, o que não ocorreu.

De acordo com as declarações públicas e com as práticas já encaminhadas pelo presidente golpista Michel Temer e seu novo ministério, o que podemos esperar nos próximos dias e meses, talvez anos, é um amplo e profundo desmonte dos direitos sociais, das políticas públicas e dos espaços de participação social construídos ao longo das últimas décadas, procurando anular, inclusive, as principais conquistas democratizantes expressas na Constituição Federal de 1988.

O desafio que se coloca hoje para as agências de cooperação internacional que atuam no Brasil desde os anos 70 é: que atitude tomar frente ao golpe parlamentar e à destruição de um legado civilizatório, construído em décadas de inúmeras parcerias entre as agências, como representantes de suas respectivas sociedades, instituições e governos, e os movimentos populares e entidades da sociedade civil brasileira?

Direitos sociais foram reconhecidos; políticas públicas foram construídas; sistemas para sua implementação foram implementados; instâncias governamentais paritárias de participação social para monitoramento e planejamento das ações foram criadas; uma sociedade brasileira menos desigual estava surgindo depois de quase meio século da antiga “paz dos cemitérios”, que a caracterizava no início dos anos 70. Ao longo da “abertura lenta, gradual e segura” – e 5 muito depois dela – os setores populares e as agências de cooperação internacional vinham produzindo uma mudança real na sociedade e no Estado brasileiro. Hoje, toda esta conquista histórica está sendo ou encontra-se sob risco de ser anulada.

Novo desafio para os movimentos populares e agências de cooperação internacional

O Bispo Emérito de São Felix do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, ao avaliar o cenário político atual do Brasil, afirmou: ”Aconteça o que acontecer, nosso sonho é mais forte.” Isso significa que, por mais que se procure anular o já conquistado, os movimentos populares e seus aliados não desistirão de seguir construindo uma sociedade mais justa, lutando pela manutenção de direitos e pela conquista de novos direitos. Por mais que se desmonte o que se construiu, o patamar atual é outro, uma sociedade muito mais organizada e consciente a respeito da história do seu país; a respeito do Estado; a respeito das suas possibilidades de transformação.

Não se trata agora de um novo começar, mas sim de uma retomada do percurso, após uma mudança institucional profunda e inesperada, fruto de um golpe de Estado de novo tipo. Trata-se de recuperar a memória do processo vivido até aqui; sistematizar as experiências, aprender com elas; traçar linhas para um novo acúmulo; juntar forças e capacidade política e desenhar novos horizontes a serem perseguidos. Tudo terá que ser revisto: país, Estado, modelo político, representação política, modo de fazer política e de fazer a gestão pública.

Uma coisa ficou clara neste processo histórico: o “novo” trazido pela participação popular não cabe, como não coube, nas velhas estruturas e nas velhas formas de se fazer política no Brasil. O “velho” não suportou o “novo” e tomou a decisão de destruí-lo. Agora, trata-se da participação popular avançar para transformar também as velhas estruturas e as velhas formas de se fazer política.

Enfim, as agências de cooperação internacional possuem um novo desafio. Para começar a definir como enfrentá-lo, é importante lembrar como tudo começou, nos tempos da “abertura lenta, gradual e segura”: reunir com o povo onde ele vive e trabalha; ouvir o que ele pensa e sente; planejar junto com o povo, principal sujeito político, o presente e o futuro – e os novos caminhos desta nova construção coletiva.

Juntamente com os movimentos populares e as entidades da sociedade civil brasileira, as agências de cooperação internacional podem definir como defender o legado civilizatório de uma sociedade mais justa e solidária.

Caminhando juntos, numa atitude respeitosa de escuta, reflexão, divisão de tarefas e construção conjunta, nosso sonho será mais forte.

Paulo Maldos

Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais – CAIS

Brasília, setembro de 2016.

Leia também:

Carta de Brasília, com o compromisso de Organizações da Sociedade Civil e movimentos sociais em manter a resistência e luta contra os retrocessos no Brasil.

Categoria: Notícia
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