Chega de comida fake

25/07/2021, às 19:04 | Tempo estimado de leitura: 11 min
Por Nathalie Beghin, Coordenadora da Assessoria Política do Inesc
Photo: @ illustration by Luisa Rivera

A Contra-Cúpula

Entre os dias 25 e 28 de julho de 2021, centenas de organizações da sociedade civil, de todo o mundo, representando agricultores familiares, pescadores, sem-terra, migrantes, mulheres, trabalhadores, povos indígenas, consumidores, pesquisadores, entre outros, se reunirão virtualmente para protestar contra a Pré-Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU, que fará um pré encontro oficial também esta semana, em Roma

Esta contra-mobilização reflete preocupações sobre a direção da Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU (UNFSS, na sua sigla em inglês), que será realizada em setembro próximo. Apesar das alegações de ser uma “Cúpula dos Povos” e uma “Cúpula de Soluções”, a organização e as propostas que estão sendo discutidas vão na direção de uma maior concentração corporativa, intensificando as cadeias de valor globalizadas insustentáveis, tecnologias excludentes e a secundarização do papel dos Estados na definição de políticas públicas.

A fome no Brasil

A fome voltou a ser realidade no Brasil. Os dados mais recentes, de 2020, revelam que cerca de 20 milhões de pessoas não tem o que comer. Isso representa 9% da nossa população, valor mais de duas vezes superior ao observado em 2013, de 4,2%.

Como era de se esperar num país tão desigual como o nosso, há imensas diferenças entre grupos populacionais. As pessoas em situação de extrema pobreza vivenciam a fome 2,5 vezes superior à média nacional. Entre os desempregados essa situação é seis vezes maior, e quatro vezes mais alta entre aquelas com trabalho informal. A fome entre as pessoas negras, especialmente as mulheres, e aquelas que habitam as regiões Norte e Nordeste e a área rural também é bem mais severa.

As causas desse grave flagelo e de sua piora em tempos recentes são várias, como detalhamos em artigo anterior, contudo, um dos determinantes centrais dessa situação, tanto no Brasil como no resto do mundo, é que a alimentação vem sendo dominada pela lógica privada do capital, transformando o alimento em mercadoria, aprofundando doenças e desigualdades econômicas e sociais.

O mal da Revolução Verde associada à financeirização das economias

Tal modelo foi baseado na implementação da Revolução Verde que articula um conjunto de estratégias privadas com apoio do poder público para aumentar maciçamente a produção de alimentos: intensiva utilização de sementes de alto rendimento, fertilizantes e pesticidas; irrigação e mecanização da agricultura; uso de novas e poucas variedades genéticas de sementes fortemente dependentes de insumos químicos; e, uma política privada de armazenamento estratégico para garantir a regularidade do abastecimento.

Neste contexto, coube à indústria alimentícia utilizar o excedente gerado nos ganhos contínuos de produtividade na agricultura, destinando-os para ração animal, combustíveis (i. e, etanol, biodiesel) e alimentos industrializados. O aprimoramento da tecnologia e o aumento da escala de produção da indústria alimentícia, com uso de ingredientes e aditivos alimentares de custo muito baixo, possibilitaram aumentar a disponibilidade e reduzir o preço dos produtos alimentícios industrializados.

Assim, nos últimos 40 anos, o Brasil e o mundo vivenciaram mudança rápida e intensa no sistema alimentar, que tem impactado o padrão de saúde e consumo alimentar da população com a substituição de refeições preparadas com base em alimentos e ingredientes oriundos das nossas terras e dos nossos territórios por produtos ultraprocessados. Esses produtos são obtidos total ou parcialmente de ingredientes industriais, os quais podem ser retirados de algum alimento ou formulados sinteticamente, são vazios de vida, nutrientes, cultura e natureza, são alimentos fake.

A comida fake

A maior disponibilidade de ultraprocessados se explica também por mudanças nas formas de distribuição. Com efeito, o desenvolvimento da indústria alimentícia foi acompanhado pela ascensão dos supermercados, que são parte integrante de cadeias multinacionais que atuam como instrumentos de empresas transnacionais para ofertar aos consumidores uma ampla variedade de ultraprocessados ou comida fake. Os supermercados seguem a racionalidade capitalista contemporânea de desregulamentação e liberalização financeira como condição essencial para a mundialização do capital.

O que se observa hoje é a intensificação de um sistema alimentar cada vez mais concentrado e comandado por poucas empresas transnacionais. Em torno de dez grandes transnacionais controlam os agrotóxicos, as sementes e os transgênicos. A aquisição de alimentos também está nas mãos de poucos, pois a maior parte do volume de vendas de varejo no Brasil está distribuída entre um número ínfimo de redes nacionais e internacionais de supermercados.

A crescente financeirização da economia tem se estendido à produção de alimentos a fim de assegurar remuneração antecipada pela venda ou para não perder recursos com a variabilidade do câmbio. Assim, a mercadoria-alimento pode ser vendida por determinado preço hoje e a entrega será no futuro, daí seu caráter meramente especulativo. Com a crise imobiliária de 2008, os alimentos apresentaram destacada importância no mercado de commodities, visto seu caráter de bem necessário, atrativo e estável.

O agricultor não exerce mais o papel de controle de sua produção, pois grandes investidores financeiros se transformam em proprietários de milhões de toneladas de alimentos que viram nesse mercado uma oportunidade de especular e aumentar seus lucros, reforçando o círculo vicioso da inflação alimentar. Além do mais, o agronegócio avança destruindo terras e territórios pertencentes a agricultores familiares, povos indígenas e demais povos e comunidades tradicionais. Além de resultar no aumento da pobreza e da miséria, esse processo destrói modos de produzir e hábitos alimentares centenários e comprovadamente sustentáveis.

E, o consumidor perdeu as conexões com o alimento de verdade, pois cada vez mais consome produtos que são tudo menos alimentos. Com isso crescem as doenças associadas à má alimentação (sobrepeso, obesidade, diabetes, hipertensão, alguns tipos de câncer, entre outras). Esse modelo de produção de alimentos fake gera injustiça, desigualdade e fome.

A sindemia da fome, obesidade, mudança climática e Covid-19

As consequências dessa captura privada e privatizante do alimento, tanto pelas transnacionais do agronegócio quanto do setor financeiro, são dramáticas. A melhor prova disso é que o mundo produz mais calorias do que o necessário para atender as necessidades básicas da população, contudo, cerca de 10% dos habitantes do nosso Planeta passam fome, o que representa algo em torno de 800 milhões de pessoas.

E, perversamente, a pandemia da fome convive com a do sobrepeso e da obesidade: cerca de 2 bilhões de pessoas no mundo possuem peso acima do esperado e mais de 650 milhões são obesas.

Essas duas endemias globais interagem com as mudanças climáticas resultando numa sindemia, isto é, a sinergia entre as pandemias e um meio ambiente adverso que reforça as doenças: a intensificação das secas ou das enchentes em todo o mundo em decorrência do aquecimento global tem forte impacto na disponibilidade dos alimentos e seus preços, resultando na diminuição de seu consumo e no aumento correlato da ingestão de ultraprocessados, contribuindo para piorar tanto a fome quanto o excesso de peso. E de maneira complementar este modelo de produção ancorada no agronegócio e nas grandes cadeias agroalimentares contribui enormemente com a emissão de gases efeito estufa.

O quadro se agrava com a doença provocada pelo Sars-Cov-2, uma vez que pessoas com fome ou com sobrepeso ou obesidade ou, ainda, vivendo em condições precárias em decorrência de eventos climáticos extremos são muito mais suscetíveis de morrer de Covid-19 do que as demais.

Comida de verdade é possível

Para combater esse sistema adoecido, a organização autônoma dos povos argumenta que a UNFSS desvia os problemas reais que o planeta enfrenta neste momento crítico. Resultante de uma parceria entre a ONU e o Fórum Econômico Mundial (formado pelas 1000 maiores corporações do mundo), a Cúpula é coordenada pela ex-presidente da Aliança pela Revolução Verde na África (AGRA) e, portanto, no seu centro estão os atores corporativos. Além disso, a Cúpula carece de mecanismos de transparência e de accountability. Desvia energia, massa crítica e recursos financeiros das soluções reais necessárias para enfrentar as múltiplas crises da fome, clima e saúde.

Urge uma transformação radical dos sistemas alimentares corporativos em um sistema alimentar justo, inclusivo e verdadeiramente sustentável que assegure o direito de todos à comida de verdade.

A contra-mobilização à UNFSS defende a produção de alimentos em pequena escala, o encurtamento dos circuitos de produção e consumo de bens alimentícios, o conhecimento tradicional, direitos aos recursos naturais e os direitos dos trabalhadores, povos indígenas, mulheres e gerações futuras. Defende, ainda, a implementação de políticas públicas ancoradas numa transformação agroecológica e baseada em sistema alimentares participativos e inclusivos, que assegurem direitos humanos e estejam protegidos de conflitos de interesse.

 

** Se quiser acompanhar a programação até o dia 28/7 acesse: https://www.foodsystems4people.org/take-action-2/

 

 

*Os textos publicados no Blog do Inesc são de responsabilidade de suas autoras e não representam, necessariamente, a opinião desta instituição. 

Categoria: Blog
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