Reforma da Previdência: urgência para que(m)?

14/03/2016, às 15:08 | Tempo estimado de leitura: 13 min
Artigo de Grazielle David

Não existe propósito em se realizar uma Reforma da Previdência neste momento, às pressas, sem amplo acordo social, por três razões principais.

1. A Previdência não é deficitária.

Estudos demonstram que a Previdência não é deficitária se for respeitado o cálculo contábil previsto na Constituição Federal. A Previdência, junto com a Saúde e a Assistência, têm um orçamento próprio, o Orçamento da Seguridade Social, que conta com uma diversidade de fontes de receitas (art.195), provenientes do orçamento da União, dos Estados e Municípios, e das contribuições sociais feitas pelas empresas e pelos trabalhadores. Dessas fontes, destaque para: Contribuição Previdenciária para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS); Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL); Contribuição Social Para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); Contribuição para o PIS/Pasep; Contribuições sociais sobre concurso de prognósticos (ex: loteria).

Contrariando a determinação constitucional, o Ministério da Previdência adota um critério contábil inadequado, ao dizer que a Previdência é deficitária porque considera para sua sustentação financeira exclusivamente as receitas das contribuições dos empregados e empregadores. Ignora-se, assim, as demais receitas que compõem o Orçamento da Seguridade Social. Quando se avalia todas as receitas e despesas do Orçamento da Seguridade Social, o resultado final é superavitário, conforme demonstrado na tabela 1 abaixo.

Existem ainda dois grandes usurpadores dos recursos financeiros do Orçamento da Seguridade Social: a DRU e as renúncias tributárias. A DRU, Desvinculação de Receitas da União, permite retirar 20% (e já existe proposta tramitando no Congresso para que esse valor suba para 30%) das contribuições sociais e econômicas que compõem o Orçamento da Seguridade Social (OSS). Em 2014, a DRU retirou R$ 63,2 bilhões do OSS. Isto quer dizer que 20% do que foi recolhido para financiar a Previdência, a Saúde e a Assistência não foi realmente para essa finalidade, foi para o Orçamento Fiscal. Dentro do Orçamento Fiscal, o recurso que foi retirado do Orçamento da Seguridade Social pode ser utilizado em outra ação orçamentária; sendo que muitas vezes (o que é mais revoltante), pode ser utilizado para pagar juros.

Os juros brasileiros são inexplicavelmente um dos mais altos do mundo (taxa Selic está em 14,25%), resultando em gastos imensos, como em 2015, quando R$ 208 bilhões do Orçamento da União foram destinado exclusivamente para o pagamento de juros. Esses juros absurdamente altos são os mesmos que fazem a dívida pública aumentar num ritmo insuportável e insustentável para o povo brasileiro. Para saciar o capital extremamente financeirizado, que pressiona pela manutenção dos juros altos para garantir a rentabilidade de suas aplicações financeiras, os investimentos e gastos sociais estão sendo sufocados.

Há também as renúncias tributárias, que são gastos indiretos de natureza tributária do Estado, com o objetivo de aliviar a carga tributária de uma classe específica, de um setor econômico ou de uma região – quase sempre a uma empresa -, sem no entanto o necessário controle democrático da sociedade, e sem contrapartidas sociais. Em um estudo do Inesc, foi possível observar que, no período de 2011 a 2014, as renúncias tributárias sobre as contribuições sociais (PIS-Pasep, CSLLL, Cofins e contribuição para a previdência) tiveram uma variação de 72,76%. Isto é: em apenas 4 anos, houve uma aumento de 72,76% nas renúnciais tributárias de fontes de receita que deveriam servir como fonte de receita para o Orçamento da Seguridade Social. Com isso, a União deixa de arrecadar uma média anual de R$ 130 bilhões de contribuições sociais que deveriam servir para financiar a Seguridade Social. Esse valor das desonerações está ficando com algumas corporações, sem controle democrático, sem avaliação do retorno social, enquanto a Previdência é acusada de deficitária. Quando avaliadas somente as renúncias tributárias sobre as contribuições previdenciárias, temos uma variação de 147,10% em 4 anos (2010-2014), com a União deixando de arrecadar uma média anual de R$ 49 bilhões.

Pela Tabela 2 acima é possível observar como as renúncias tributárias sobre as contribuições previdenciárias aumentam num ritmo muito superior aos gastos previdenciários, 65% e 27%, respectivamente, entre 2012 e 2014; demonstrando seu importante impacto negativo nas contas da Previdência Social. Se é necessário conter gastos com a Previdência, que se comece cortando as renúncias tributárias realizadas no que deveriam ser suas fontes de receitas – as contribuições previdenciárias e as demais contribuições sociais.

2. Possíveis mudanças demográficas brasileiras são de médio/longo prazo, não requerem uma mudanças imediatas e não podem retroceder na garantia de direitos.

Com as previstas mudanças demográficas e a ampliação dos detentores de direitos previdenciários no Brasil, é possível que a Previdência tenha que ser reavaliada; porém essa é uma necessidade de médio/longo prazo. Assim, não cabe fazer mudanças na Previdência num momento em que se busca identificar problemas e encontrar soluções de imediato, para enfrentar uma crise. Além disso, mudanças como as demográficas requerem uma repactuação social que se constrói com o tempo, com estudos, com discussões e construções coletivas. E não com medidas atropeladas, por imposições das corporações.

Assim, é importante que tanto no Executivo quanto no Legislativo sejam criados, reativados ou fortalecidos espaços de governança, com ampla participação social, para avaliação do real cenário nacional referente à Previdência Social. Somente após esse diagnóstico será possível pensar em um prognóstico e em medidas que podem ser adotadas. Quando se trata de direitos humanos, não é possível pular etapas nem retroceder na garantia social, especialmente num Estado Democrático de Direito, como é o caso do Brasil.

3. Reforma Tributária e Receitas em Potencial são as ações imediatas que o Brasil precisa.

Existe neste momento na Câmara dos Deputados uma Comissão Especial da Reforma Tributária, montada por iniciativa do seu presidente, o deputado Eduardo Cunha, cujos trabalhos têm ocorrido de maneira bastante fechada e distante da sociedade. Isso é preocupante porque se trata de um tema de grande interesse social, num momento de crise econômica. Um exemplo: em 2 de março passado, a Comissãoentre os deputados membros da Comissão. O ideal seria que o parecer estivesse disponível para a sociedade no site da Câmara, como acontece nas demais comissões. Por que justo essa Comissão está se esquivando de garantir a transparência e a participação social?

Apesar do discurso de que o Brasil tem a maior carga tributária do mundo, ao compará-la com a de outros países, percebemos que a carga tributária brasileira está na média mundial. O problema que temos não refere-se ao tamanho da carga tributária e sim à sua distribuição. Hoje os pobres e a classe média pagam muitos tributos proporcionalmente à sua renda, enquanto os super ricos praticamente não pagam nada. Isso ocorre por dois fatores: a taxação é muito maior sobre o consumo (indireta) do que sobre a renda e o patrimônio (direta). Além disso, a tributação sobre a renda também não está ocorrendo de maneira mais progressiva, cobrando mais de quem ganha mais, devido à isenção de taxação sobre lucros e dividendos. Isso é um problema porque as pessoas mais ricas têm sua renda proveniente justamente de lucros e dividendos, e não de salários taxados na fonte como ocorre com a classe média e trabalhadores assalariados.

Reformar o sistema tributário brasileiro – tornando o mais progressivo, diminuindo os tributos sobre o consumo, aumentando os sobre a renda e o patrimônio, tornando o imposto de renda mais equânime entre as rendas do trabalho e do capital, distribuindo a carga tributária ao diminui-la para os pobres e classe média e aumentá-la para os super ricos –  permitiria inclusive uma ampliação da capacidade de consumo interna e de movimentação e fortalecimento da economia nacional. Ainda seria possível aumentar o volume da arrecadação, em decorrência da redistribuição, e não do aumento, da carga tributária. Em vez de vencer a crise com cortes na Previdência, é possível superá-la com medidas de justiça fiscal, como a redistribuição da carga tributária, e ainda promover justiça social, garantindo que não haja retrocessos nos direitos humanos, sociais, econômicos, culturais, ambientais.

Ainda na Reforma Tributária, existe uma iniciativa de algumas organizações da sociedade civil da qual o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) faz parte junto com o IJF (Instituto de Justiça Fiscal), chamada de Projeto Isonomia Já, que estima que com as devidas correções progressivas na cobrança do Imposto de Renda, seria possível ampliar a sua arrecadação em R$ 80 bilhões, além de aumentar a isenção desse imposto para até R$ 3.299 (salário mínimo calculado pelo DIEESE) e diminuir seu peso para quem recebe até 20 salários mínimos.

Já as receitas em potencial que o Brasil tem são decorrentes, principalmente, da sonegação fiscal (R$ 500 bilhões), dos fluxos financeiros ilícitos (R$ 90 bilhões), e da dívida ativa da União (R$ 1,5 trilhão). Do total da dívida ativa da União (DAU), R$ 150 bilhões já tiveram seus processos judiciais finalizados e podem ser cobrados imediatamente; outros R$ 913 bilhões estão sob discussão administrativa nas Delegacias da Receita Federal de Julgamento (DRJ) e no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf). Assim, com priorização de atividades e direcionamento de servidores da Receita Federal, a União poderia  atuar fortemente na análise e no processamento desses créditos. Para todos esses casos de Receitas em Potencial, medidas administrativas, a cargo do Executivo apenas, seriam capazes de fortalecer a capacidade arrecadatória e garantir pelo menos mais R$ 690 bilhões aos cofres públicos (sem contar a DAU que está sob contencioso administrativo).

Somente com as propostas aqui apresentadas seria possível ampliar o Orçamento da União em R$ 933 bilhões; então, por que discutir de forma apressada os tais R$ 85 bilhões de um dito déficit da Previdência Social? Às corporações, especialmente multinacionais e bancos, interessa manipular o discurso e dizer que a Previdência, os direitos trabalhistas, as proteções sociais, as políticas públicas e os direitos humanos são os culpados das crises econômicas, mas a verdade é outra, os culpados são os juros altos, as renúncias, a financeirização excessiva, a sonegação, os fluxos ilicítos, os paraísos fiscais e os devedores da União (no caso, as mesmas corporações – surpresa!) que não pagam sua parte, o justo.

Categoria: Artigo
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