O que muda no financiamento da educação com o novo pacto federativo?

19/11/2019, às 17:56 (atualizado em 20/11/2019, às 15:26) | Tempo estimado de leitura: 12 min
Por Cleo Manhas, assessora política do Inesc
Desvinculação de receitas pode extinguir programas do FNDE de combate às desigualdades no ensino. Políticas educacionais previstas na Constituição sofrem maior ataque desde a sua aprovação
Estudantes protestam contra cortes na educação. Foto: Igor Matias/ NINJA

Está ocorrendo o desmonte das políticas públicas garantidoras de direitos, em um ataque neoliberal ao Estado, como se pode constatar desde a aprovação da Emenda Constitucional 95, conhecida como “teto dos gastos” e, mais recentemente, com a Proposta de Emenda Constitucional nomeada de PEC do Pacto Federativo.  Além de cotidianas manifestações públicas de gestores governamentais contra os direitos humanos, a ciência e o pensamento crítico.

Com relação à política de educação é notória a intensidade do ataque: propostas como “escola sem partido”, em reação ao que chamam de “ideologia de gênero” e imposição de militarização de escolas são alguns dos exemplos mais famosos. No âmbito orçamentário, vieram ataques por meio dos contingenciamentos e retirada de recursos, como propõe o projeto Future-se, apresentado às universidades como panaceia, mas que é uma forma de permitir que organizações sociais passem a gerir universidades públicas, com recursos vindos do mercado. Outra evidência do desmonte na educação é a proposta de junção das agências de fomento Capes e CNPQ, que ficariam sob a responsabilidade direta da Presidência da República e não mais do MEC ou Ministério da Ciência e Tecnologia, criando uma enorme anomalia para o sistema.

O ataque mais recente veio da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 188/2019, chamada de PEC do pacto federativo, que, entre outras coisas, propõe a unificação dos orçamentos da saúde e da educação. Hoje, os estados destinam para a saúde pelo menos 12% da receita corrente líquida (soma de receitas tributárias, contribuições patrimoniais, industriais, agropecuárias e de serviços, transferências correntes, entre outras — menos o que fica para estados e municípios por determinação constitucional), e 25% para educação. No caso dos municípios, os percentuais são 15% e 25%, respectivamente. A PEC agrega os percentuais (40%) de forma que um prefeito poderá, por exemplo, aplicar 20% em saúde e os outros 20% em educação. A proposta provocará uma disputa de recursos entre as áreas, enfraquecendo-as.

Antes de analisar as consequências disso, vamos relembrar como chegamos ao atual quadro de políticas públicas na área da educação:

Linha do tempo da educação

Com a Constituição de 1988, a educação passou a ser um direito de todas as pessoas e dever do Estado, que foi obrigado a oferecer vagas desde a educação infantil, até o ensino médio, ou educação básica. Direito incorporado de forma progressiva, em 1988, no texto constitucional, ampliado com a Lei de Diretrizes de Bases da Educação em 1996 e, mais tarde, com a Emenda Constitucional 59 de 2009.

Para se ter a medida da importância do texto constitucional, que está sofrendo o maior ataque desde a sua aprovação, siga o fio abaixo sobre o direito à educação ao longo da história do Brasil.

1) Até 1930 o ensino que ia além da alfabetização era para poucos. A maior parte da população recebia aprendizagens apenas para o trabalho nas fábricas e no campo.

2) A partir de 1930, o que era responsabilidade apenas dos estados, passa a ter uma centralidade maior no governo federal, que criou o Ministério da Educação e Saúde Pública, com verbas específicas para essas áreas. Apesar do avanço, o ensino público e gratuito não atinge as massas trabalhadoras, que fica bem distante do que é oferecido às elites.

3) Na década de 1950, quase metade da população acima de 15 anos se declarava analfabeta e apenas 15% dos matriculados concluíam a 1ª série.

4) Durante a ditadura militar a educação foi voltada para a profissionalização e o produtivismo, sendo a escola um aparelho de cerceamento do pensamento e reforço das concepções dos militares no poder. O ensino de filosofia foi proibido e em seu lugar nasce a “moral e cívica”. Do mesmo modo, geografia e história foram substituídas por “estudos sociais”. A obrigatoriedade de repasse de verbas do âmbito federal para estados não é perene e os recursos vão escasseando, indo de 7,6% em 1970 para 5% em 1978.

5) A Constituição de 1988 (CF/88) trouxe a educação como direito social, não mais como assistencialismo do Estado. E, por pressão popular, especialmente dos movimentos feministas, a etapa da educação infantil (creche e pré-escola) foi reconhecida.

6) A CF/88, em suas disposições transitórias, obrigava que o Estado universalizasse o ensino e erradicasse o analfabetismo em 10 anos.

7) A partir daí vieram as leis infraconstitucionais que mudaram a realidade da educação brasileira: o Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996.

8) Na década de 1980, a taxa de analfabetismo (de acordo com o IBGE) era de 25,9%, hoje é de 6,8%.

Como se pode constatar, a partir da vigência da CF/1988, em termos educacionais, o país caminhou bastante, mesmo que com várias lacunas de qualidade ou de acesso com relação a raça e região, especialmente campo/cidade. Foi a partir daquele momento que se reconheceu até mesmo  as diferenças, como a importância da educação indígena, por exemplo, garantindo uma maior reflexão sobre a oferta de educação multifacetada.

Contudo, esse caminho nunca havia sofrido risco tão grande como agora, em seu conjunto, seja com relação aos modelos educacionais propostos, como aos recursos orçamentários destinados à política.

PEC do Pacto Federativo e disputa de orçamentos entre educação e saúde

A PEC do Pacto Federativo, além de propor a junção dos orçamentos, o que promoverá uma disputa entre áreas essenciais para a população, como são a saúde e a educação, abre flanco para a desvinculação dos recursos, ao flexibilizar a sua utilização.

Vejamos o exemplo do Salário-Educação

Hoje recolhido pela União e repassado para estados e municípios, de acordo com a proposta, o Salário-educação poderá ser integralmente repassado, não ficando nada na União, ou melhor, para o Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino (FNDE). O Fundo é essencial para amenizar as desigualdades regionais, por meio de programas que são, em parte, financiados com recursos do salário-educação.

A saber, o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), até 2018 distribuído para todos os municípios; o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), garantindo alimentação escolar balanceada e de boa qualidade; o Programa Nacional de Transporte Escolar (PNATE), que entra como complementar para os municípios que o acessam, com padrões mínimos de segurança e conforto para crianças e adolescentes; e o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), que visa ajudar escolas a resolver problemas estruturais, ou mesmo construírem quadras ou bibliotecas com esse recurso, sem burocracias, além de serem fiscalizados pelos conselhos escolares, garantindo participação na forma de utilização.

Até o final da primeira quinzena de novembro de 2019, o que havia sido executado, incluindo os restos a pagar, era um montante de R$ 6,07 bilhões, conforme mostra a tabela 1, que traz o orçamento desses programas administrados pelo FNDE, de maneira centralizada, garantindo tratamento equitativo entre os diferentes entes federados.

A promessa do Ministério da Economia com o pacto federativo é a de que estados e municípios teriam cerca de R$ 9 bilhões a mais em seus orçamentos. No entanto, quando se olha para a arrecadação dessa contribuição, os números não batem, conforme mostra o infográfico abaixo, pois o que ficou na União foi um total de R$ 6,9 bilhões. E o que se precisa é acabar com o teto dos gastos, não com o FNDE e suas importantes políticas para amenização das desigualdades regionais.

Uma das inovações da Constituição de 1988 foi prever que o orçamento público teria a função  de redução das desigualdades, princípio este que a PEC do Pacto Federativo quer extinguir. Com relação à educação básica, desde os primeiros meses desse governo os repasses complementares para políticas tais como ensino integral vêm minguando. E agora deixam clara a intenção de não mais contribuir financeiramente para garantir equidade. A proposta retira, ainda, a obrigatoriedade de o governo gerar vagas em escolas onde houver falta. O que diz a CF/88: que o governo é obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede de ensino quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública em uma localidade. No entanto, se a proposta vingar, essa obrigação será retirada, o que passa a ideia de que em caso de falta de vagas, os estudantes precisam resolver por conta própria. O governo alega que há possibilidade de acessar bolsas de estudo na rede privada. E talvez o que esteja por trás da medida seja o favorecimento da educação privada em detrimento da pública.

Outro agravante é que o relator da matéria, senador Márcio Bittar (MDB/AC) quer aprofundar ainda mais o desmonte orçamentário, pois diz que, por ser um “super liberal”, acrescentará ao orçamento da saúde e educação os gastos com aposentados e pensionistas, reduzindo significativamente os montantes destinados a estas políticas e aprofundando a crise que já está instalada.

Portanto, o que se avizinha é um retrocesso de mais de 30 anos nas políticas públicas garantidoras de direitos no país. A reforma da previdência e as alterações na CLT já foram aprovadas e, se confirmada a PEC do Pacto Federativo, será ladeira abaixo. É preciso muita mobilização para dificultar e impedir essa perda de direitos.

Leia também: Entenda como funciona o financiamento da Educação Básica no Brasil

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Categoria: Artigo
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