Educação e as novas demandas de feminismo

06/03/2017, às 12:49 | Tempo estimado de leitura: 13 min
Como enfrentar o sexismo num tempo em que escola formal, em crise, não dialoga com saberes e atitudes como o grafite?

Nesta Semana da Mulher, o Inesc vai atuar em parceria com o site Outras Palavras com a publicação conjunta de artigos que examinam questões importantes de gênero e do movimento feminista em nosso cotidiano. O primeiro dessa série é sobre educação.

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Por Marcia Acioli, assessora política do Inesc.

Historicamente, as mulheres têm lutado pela emancipação, pela conquista de autonomia e pela entrada no mercado de trabalho como forma de equidade de gênero.

Simone de Beauvoir, filósofa francesa conhecida por seus tratados sobre feminismo, já sinalizava que pela via do trabalho as mulheres, ao lutar por independência concreta, diminuiriam a distância entre elas e os homens. Para isso, a educação seria estratégica na medida em que as prepararia para um trabalho mais qualificado.

A essas demandas clássicas, que permanecem atuais, soma-se uma diversidade de questões que se apresentam como urgentes. Hoje o feminismo na educação se entrelaça a outros temas indissociáveis. O ser menina na escola não é uma experiência única a todas as meninas e meninos que se percebem meninas. No mínimo, o ser menina se relaciona à raça/cor, à expressão de gênero, à sexualidade, à experiência familiar, ao local de morada, à construção do ativismo, ao talento e ao desejo intelectual, à produção e ao acesso à arte e à identidade cultural.

Ser menina, negra, moradora de favela é uma experiência diferente de ser menina não negra, de classe média, que por sua vez é diferente daquela de uma menina trans. A escola deve dar conta dessa diversidade, favorecendo o desenvolvimento do ser pleno, das possibilidades e dos desejos, visando à superação das desigualdades e ao fim da violência de gênero.

Portanto, o feminismo não diz respeito somente às meninas na escola. A dignidade é uma construção relacional que também tem nexo com as desigualdades estruturantes. Ela se estabelece num complexo de relações pessoais e sociais nas quais todas as pessoas devem ter o livre exercício da expressão de seus anseios e desejos. O ideal da educação é sempre ampliar possibilidades rompendo barreiras simbólicas que colocam sujeitos em relações assimétricas.

A educação sexista, a mais comum no Brasil, tem como pressuposto um fosso que separa o universo feminino do masculino, sendo este associado à força e aquele à fragilidade. A educação sexista condiciona, desde a mais tenra infância, meninos e meninas a se comportar de formas diferentes. Nega a sexualidade das meninas e estimula a dos meninos, prepara meninas para serem mulheres “cereja do bolo”, princesas inertes, delicadas e sem voz. Educa meninos para atitudes mais agressivas, mesmo que porventura não queiram esse lugar.

O Brasil é território violento para meninas. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Ipea1 baseado em dados de 2011 do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan) revelou que 70% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes, dos quais 89% do sexo feminino. A pesquisa estima que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e que, desses casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. Desses estupros, cerca de 70% são cometidos por pessoas próximas ou da própria família. Ou seja, o estupro é uma violência banalizada que tem ganhado novos contornos. O estupro coletivo, por exemplo, violência perpetrada como forma de ostentação, tem ganhado espaço na mídia. A divulgação nos meios de comunicação e os trâmites da denúncia, não raras vezes, apontam a vítima como responsável. No mínimo, há esforço para desqualificar o caráter de quem sofreu a agressão. Em outra pesquisa também realizada pelo Ipea em 20132, 26% dos entrevistados concordam total ou parcialmente com a afirmação de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. A lógica machista mata de diversas formas.

Vozes conservadoras da sociedade reclamam das iniciativas que propõem discutir questões de gênero na escola, alegando ser uma intervenção nos valores familiares. Ao contrário disso, a discussão de gênero não diz respeito ao mundo privado. Significa educar para a esfera pública; debate urgente no país líder mundial em assassinatos de gays, travestis e transgêneros. Como exemplo de debate sobre o tema, a revista Descolad@s 2017, uma produção de adolescentes do Inesc com o foco em direitos humanos, promove e divulga reflexões acerca do assunto, oferecendo para as escolas públicas um material rico e provocador.

Comprometida com o desenvolvimento de uma visão de mundo, a educação é indispensável para a promoção de uma nova ordem social. Portanto, quanto antes se inicia o trabalho pedagógico com o foco na equidade de gênero, maior é a possibilidade da formação de sujeitos mais sensíveis e dispostos a uma relação equânime, livre de opressões e de assimetrias.

A despeito da escola, meninas estão construindo alternativas, querem expressar sua sexualidade e o seu desejo sem censura. Querem escolher e escolhem suas roupas e cores livremente, buscam novas carreiras, querem dançar sem serem vistas como objeto disponível para o desejo do outro, querem expor seus corpos sem que isso signifique um convite ao estupro, querem namorar, querem estudar, querem não estudar, querem fazer rimas e batalhas de hip hop, querem fazer grafite, andar de skate, dançar ballet, fazer ciência, pensar e ser respeitadas. Elas têm rompido com padrões cristalizados na sociedade, muitas vezes com alegria, outras com dor. Elas, desejam, sobretudo, a plenitude da existência e construir nova lógica social. Querem viver sem violência!

Assim como a dignidade, a felicidade – afinal, a vocação mais radical de todas as crianças – deve emergir da educação feminista.

1Nota Técnica Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde.

2Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS)

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Categoria: Artigo
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