Betinho

01/01/1970, às 0:00 | Tempo estimado de leitura: 6 min
Por Atila Roque, Colegiado de Gestão do Inesc

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Hoje fazem 10 anos de morte de Herbert de Souza, o Betinho. Os muito jovens talvez não saibam quem ele foi. Isso porque somos um país de memória fraca, muito fraca. Nossos heróis são esquecidos ou morrem de overdose, como diria Cazuza. Mas convém lembrá-lo, nesse momento em que a política parece ter sido reduzida à maldita arte do possível e a utopia foi deixada para uns poucos malucos.

Repetiram tantas vezes o mantra da não-alternativa que uns e outros, ex-revolucionários, especialmente depois que chegam ao poder, acreditam que nada podem mudar. Deixem tudo como está ou vamos bem devagarinho, ensinam, sem provocar marola para não assustar. O melhor mesmo é fazer como sempre fizeram os donos do poder, vamos até tornar as coisas um pouquinho melhor para eles de modo que não nos acusem de anti-capitalistas ou coisa pior.

Betinho era o contrário desse conformismo. Ele dizia que se fosse deixar na mão do destino (ou do mercado) teria morrido muito antes, talvez no quartinho onde foi isolado quando diagnosticado com tuberculose, ainda adolescente. Hemofílico, sobreviveu a dois golpes militares (Brasil e Chile) e amargou mais de 10 anos de exílio. Não se abalou nem quando foi diagnosticado com vírus HIV, juntamente com os dois irmãos, Chico Mário e Henfil, também hemofílicos. Justamente quando ele achava que estava tudo dando certo, anistiado, apaixonado pelo filho pequeno, aprontando mil e umas, vinha aquela notícia que, ao final dos anos 80, soava mais como uma sentença de morte.

Teimoso, ele seguiu em frente e fez do drama pessoal uma causa pública. Já tendo criado o Ibase, fundou a Abia, a primeira ONG a enfrentar o problema da Aids no Brasil. A lei que determinou o controle dos bancos de sangue é batizada de “Lei Betinho”, em homenagem ao seu empenho na luta pelo fim do criminoso mercado de sangue. Sofreu como um cão danado a morte dos dois irmãos e acho que nunca voltou a sofrer tanto outra vez. Mas não se deixou matar de véspera e ainda oferecia, com aquele sorriso bem Fradim, um “pouquinho de Aids” para quem reclamasse de cansaço perto dele.

Na década de 1990, voltou a mobilizar o Brasil como o principal animador da Campanha Contra a Fome, desafiando mais uma vez o “impossível” e a boa consciência de uma esquerda que achava que distribuir alimentos era mera caridade, como se compaixão e solidariedade com o próximo não fossem valores revolucionários no mundo que vivemos. A “Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida”, nome oficial do movimento, politizou como nunca o tema da exclusão social e da pobreza, resgatando para o centro do palco o impulso individual e a capacidade de mobilização de cada uma das milhões de pessoas que se organizaram em milhares de comitês pelo país afora. Tudo isso parece ter sido esquecido nesses tempos de Fome Zero.

O silêncio quase total da mídia e do governo neste aniversário de morte nos envergonha. Foi assim há alguns meses, quando completaram os dez anos de morte de Darcy Ribeiro. Esquecemos rápidos os nossos heróis.

Betinho era um artista do impossível e queria a utopia no presente. Entrou de cabeça em quase todas as causas que importaram no seu tempo, cometeu equívocos políticos e até éticos – os quais purgou em praça pública, como no caso da doação de um bicheiro para salvar a Abia do fechamento iminente – , mas sorveu a vida até a última gota, com paixão e sem nunca deixar de acreditar que podemos sim mudar o mundo. O impossível é possível e a única coisa que não tem mesmo solução é a morte.

Texto publicado no Blog Opinativas

Categoria: Artigo
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