A língua é minha pátria?

04/08/2021, às 12:50 (atualizado em 04/08/2021, às 16:59) | Tempo estimado de leitura: 8 min
Por Cleo Manhas, assessora do Inesc e linguista que abandonou a profissão.
A língua é viva e não tem dono, pertence a cada falante.
Márcia Acioli/manifestação

As línguas latinas em geral e a língua portuguesa em particular têm marcadores de gênero para a maior parte de substantivos, pronomes e adjetivos. E a “norma” diz que quando generalizamos, vale a forma masculina. Importante explicitar que a tal “norma” também é ideologizada e criada para garantir que prováveis mudanças sejam controladas por “especialistas” e autorizadas por quem tem poder. Além do que, as instituições consideradas como guardiãs da língua, como a Academia Brasileira de Letras, por exemplo, são formadas por homens velhos e brancos, que julgam como parte da norma culta, o masculino genérico.

E cristalizam desigualdades por meio, também, da língua, segregando pessoas atendidas por um Estado que viola cotidianamente os seus direitos, em particular o direito à educação de qualidade. E ainda tolhem seus potenciais ao não aceitarem as diferentes formas de expressão cunhadas em comunidade, que os e as identificam, visto que educação não é só na escola, mas e principalmente nos corres cotidiários.

Fosse apenas uma norma padrão, que não nos define culturalmente, quando a presidenta eleita Dilma Roussef se intitulou “Presidenta”, não teria causado tanta comoção nas redes e mídias, a ponto de a presidente (e não presidenta) do Supremo Tribunal Federal argumentar em sua audiência de posse que não seria presidenta por ter sido estudante e amar a língua portuguesa. Estava nítida a ideologia imposta, o cargo é masculino, a presidenta eleita estava ali muito temporariamente.

 

O Patriarcado e a imposição do masculino como norma

Ter como certo que ao generalizarmos usamos a forma masculina, reforça as estruturas patriarcais, machistas, sexistas, pois a linguagem é parte de nossa formação como pessoas. Assim como há palavras que reforçam nossa estrutura racista, tais como “denegrir”, ou expressões “negro de alma branca”.

Para a língua portuguesa, o masculino como genérico foi sistematizado pelo linguista Joaquim Matoso Câmara Jr, na década de 1960, quando ele descreveu que a vogal “a” era marcadora do gênero feminino e o masculino significava a ausência do “a”, portanto, natural temos o masculino genérico.

Depois do advento da “Escola sem Partido”, da “Ideologia de gênero”, agora atacam a linguagem, com a proposta de projeto de lei que impede a fluição de diversas e diferentes formas de nos comunicarmos. É possível impor a outro país uma reforma ortográfica, como a que ratificamos junto com os países de língua portuguesa, capitaneados por Portugal; colonialismo que persiste. No entanto, não é aceitável que nós, falantes da língua, a modulemos de acordo com nossas culturas.

A língua é viva e não tem dono, pertence a cada falante, que a depender de onde e como vive, adquire nuanças culturais reforçando o pertencimento e as diferentes identidades. A linguagem nos constitui e nós constituímos a linguagem que nos identifica como únicos, únicas, uniques no mundo.

 

A imposição de normas para corpos não heteronormativos

O enquadramento da língua é colonizador. Imaginemos as milhares de línguas existentes no Brasil quando da chegada dos portugueses e as violências sofridas pelos povos originários, obrigados a adotarem a língua portuguesa como norma. Lembrando que nosso território é gigantesco, para atingir tal feito certamente foram necessários punhos de ferro no lombo das pessoas.

No entanto, essas informações não estão nos livros de história, porque a “oficial” sempre foi contada pelo colonizador. Acontecendo o mesmo com a tal “norma culta” da língua, reproduzida pela academia sem grandes questionamentos e resguardada por instituições mofadas. Tentam impedir a discussão de gênero nas escolas, tentam impedir a linguagem de gênero, legislando sobre diferentes corpos que não se identificam com a norma padrão. Em tempos de fundamentalismo, ao invés de a língua se adaptar às mudanças, impõem que as pessoas se aprisionem em seus corpos e em suas formas de manifestação.

 

A tentativa de enquadramento cultural por meio da criação de nova Lei

Então, em idos de novembro de 2020, um deputado federal, ocupante de um cargo público, em plena pandemia de Covid-19, resolveu que era de suma importância usar o seu poder de legislador e apresentar um projeto de lei que tem como ementa a seguinte pérola:

“Veda expressamente a instituições de ensino e bancas examinadoras de seleções e concursos públicos a utilização, em currículos escolares e editais, de novas formas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portuguesa, em contrariedade às regras gramaticais consolidadas.”

E segue, em sua justificativa, se arvorando a grande mestre sociolinguista patriótico, defensor daquilo que chama língua, dizendo que: “Qualquer arroubo de opinião nesta seara (de incluir linguagem de gênero ou neutra) não merece qualquer acolhida mais séria, sob pena de se corromper o liame comunicacional mais elementar de um povo: sua língua, o que faria jogar por terra todos os seus valores, identidade e história comum.”

Há muito cinismo nesta afirmação, pois ele nos diz que a língua representa valores, identidades, história comum. Sim, ela traz consigo todas estas questões e por isso não é representada pela “norma culta”, ou padrão, ela é mutável a depender das necessidades de reconhecimento. Ela traz as identidades, ela traz as pessoas, em coletivo, mas também individualmente, pois cada pessoa precisa ser reconhecida em sua individualidade para estar em coletivo com toda a sua integridade. E o deputado tão preocupado com a língua, jamais deveria usar história comum no singular, há muitas histórias para além da oficial.

Caríssimo deputado, depois que o senhor apresentou esta proposta já morreram outras 360 mil pessoas, que se juntam às outras 200 mil, que já haviam partido entre março e novembro de 2020, vítimas de uma pandemia com o acréscimo cruel de política do genocídio. Então, gaste seu tempo pensando e agindo para que o governo cumpra seu papel constitucional, ao invés de querer estancar os rios.

 

 

*Os textos publicados no Blog do Inesc são de responsabilidade de suas autoras e não representam, necessariamente, a opinião desta instituição. 

Categoria: Blog
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