Eu conheci a Marielle

18/03/2019, às 14:19 (atualizado em 18/03/2019, às 14:22) | Tempo estimado de leitura: 9 min
Por Carmela Zigoni, assessora política do Inesc
Carmela Zigoni estava no Forum Social Mundial quando recebeu a notícia da morte de Marielle. Neste relato sensível, a assessora do Inesc relembra o momento de dor e empatia daquele 14 de março, e 1 ano depois, da presença da vereadora que virou semente
Sessão solene Marielle Franco
Sessão Solene em Homenagem à Vereadora Marielle Franco na Câmara dos Deputados

Muito se tem falado sobre o adoecimento de defensores de direitos humanos nos tempos mais recentes. De fato, nossa mente, nosso corpo e nossa alma suportam realidades que nem sempre damos conta, nós que estamos em luta permanente contra a violência e pelo direito a uma existência humana plena.

Ontem minha mente/corpo/alma me pregaram uma peça. Eu acordei sem memória. Fui para o trabalho de manhã, para uma roda de conversa sobre racismo religioso, mas não lembrava de estar vivendo o dia 14 de março, um ano da execução da vereadora, socióloga e ativista Marielle Franco. Cheguei ao evento e um colega me perguntou se queria iniciar a atividade com palavras sobre ela, e eu respondi que não. Me dei conta naquele momento que havia um vazio em mim, e que eu não tinha me preparado para viver este dia. Mãe Bahiana e outras ativistas do movimento de mulheres negras fizeram as falas, um pai de santo cantou pra Oxalá. Ali começou a cair a ficha.

A notícia: soco e falta de ar

Há um ano, eu estava no Fórum Social Mundial em Salvador (BA), com companheiras de organizações de diversas partes do Brasil responsáveis pelo projeto Mulheres Jovens Negras na Luta contra o Racismo e o Sexismo[i], conhecido como Hub das Pretas, além de colegas da organização em que trabalho, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Viajamos cheias de esperança para participar do Fórum, renovar as energias para o ano de agendas políticas pesadas, e viabilizar a participação de jovens negras em um espaço histórico de propostas para “um outro mundo possível”. No dia 14 de março, após uma jornada de intenso trabalho, paramos para comer um acarajé em Rio Vermelho, fechar o dia com dendê, que alegria. Caminhando de volta para o hotel, nos encontramos com outros companheiros de luta, e um deles me chamou de lado: “Mataram a Marielle.” Dali pra frente, nem sei por onde fomos e o que fizemos, só sei que eu estava com amigas do Rio de Janeiro e a prioridade era cuidá-las e viabilizar a volta delas pra casa.

A dor e a empatia

O dia seguinte foi dia de marcha, pelo menos para as pessoas negras que se encontravam no Fórum. E para mim. Não sei nem como descrever aquele momento de luto, revolta, tristeza, estar ali caminhando e pensando que enterrar os seus, que morreram de forma violenta e prematura, é o cotidiano de todas as periferias e favelas do Brasil, de tantas famílias destruídas pela guerra ao tráfico, que na verdade é uma guerra contra o povo negro desse país.

A partir de então, uma música passou a tocar na minha mente e ficou por meses tocando e tocando: Zé do Caroço, na voz de Leci Brandão. O recado estava dado: vocês podem trabalhar, construir lideranças, podem até vencer no voto, mas nós vamos matar vocês. A esperança que eu sempre senti ouvindo sobre o nascimento do novo líder na favela estava abafada. O luto permanente, estratégia de desmobilização dos pobres neste duro Brasil, estava amplificado. Mulher, negra, mãe, favelada, bissexual: o corpo que expressava tanto e de tantas formas, tombava diante de nós, estarrecidas, perdidas.

A semente

Meses depois, tive a oportunidade de ouvir Leci Brandão ao vivo, ao lado de Luedji Luna, na comemoração dos 30 anos do Geledés – Instituto da Mulher Negra, em São Paulo. Ali o Zé do Caroço ganhou outro sentido: elas dançavam e cantavam, grandes nomes como Sueli Carneiro, Jurema Wernek, Nilza Iraci, e tantas outras. Era a memória viva que dançava e cantava celebrando décadas de resistência. É sobre força, estratégia, coletividade e beleza na luta.

Este texto nasce do processo de viver este dia 14 de março de 2019, um dos dias mais longos da minha vida, em que pouco ou nada controlei de mim. Dia de falar de racismo no trabalho, de ir ao ato na Praça Zumbi dos Palmares, onde se multiplicaram as placas azuis inscritas com Marielle Franco. Dia de estar com amigas, de enviar mensagens àquelas que estão longe, que estiveram comigo um ano atrás (e de ter dor de cabeça). Dia de conectar-me a estas mulheres que seguiram buscando respirar e lembrar que há 519 anos se luta nesse território por liberdade, justiça e diversidade. Amigas que estão no Rio, Recife, São Paulo, aqui no DF, e outra lá na Finlândia. Mulheres negras, ativistas, de diferentes idades e histórias, que ensinam, acolhem, produzem conhecimento.

Quando vi o belíssimo vídeo de homenagem da Mídia Ninja, eu só queria gritar: eu conheci a Marielle! Não, nós não fomos amigas. Mas eu conheci o seu trabalho, eu acompanhei sua trajetória e torci por ela, e em uma noite de roda de conversa sobre mobilidade urbana no Teatro Dulcina, promovida pelo Movimento Nossa Brasília, nós conversamos. O sorriso, a energia, a inteligência, um momento fugaz, que me faz sentir “abençonhada”, palavra inventada por Mia Couto que junta sonho e benção, o que está dentro e a magia que vem de fora, do coletivo. Marielle é semente, ensinam sua companheira e aqueles que estiveram ao seu lado. Ela transcendeu a pessoa. Se multiplicou. Eu a conheço porque há muitas como ela, de geração em geração. Porque é um presente da vida contar com esta referência, e neste sentido, presente é presença.

Eles latem, nós carnavalizamos

Foto: Rodrigo Gorosito/G1

O carnaval provou que política de rua incomoda, e a Mangueira causou alvoroço com seu samba enredo de 2019: lembrou Leci, Jamelão, Dandara e Zumbi. Tornou verde e rosa a multidão quando interpelou: “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”. Lavou a alma de tantas nós, que saímos para os blocos para escrachar a política, os laranjas, as milícias e o fundamentalismo religioso. Carnaval é festa política desde sempre, ora pois. E foi ali, na avenida, que Marielle Franco se juntou às pessoas que viveram para a transformação social, e que nunca serão esquecidas, ainda que os livros de história tentem apagar.

Eles dizem que não conheciam Marielle. Que ela teria ficado conhecida após sua morte. Eles mentem. Ao (literalmente) latir no Parlamento, os donos do poder comprovaram que são títeres do espetáculo das eleições do golpe, do caixa dois e notícias falsas, do racismo, homofobia. O nosso palco é outro. Da alegria, da afetividade. E com nossa força seguiremos interpelando: Quem mandou matar Marielle Franco?

*Dedico este texto a Lucia Xavier, Silvana Bahia, Rachel Barros e Marina Ribeiro, que me ajudaram respirar em momentos de muita dor.

[i] Oxfam Brasil, Fase Recife, Fase Rio, Ibase, Criola, Instituto Pólis.

Categoria: Artigo
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