Os outros e nosotros

08/04/2009, às 12:49 | Tempo estimado de leitura: 12 min
Por Cleomar Manhas, assessora do Inesc

 O outro, o estrangeiro, não é percebido em sua dimensão social e política, ao contrário, é visto no espaço do espetáculo, do folclore e enriquece a mim, como identidade hegemônica. Eu o tolero, mas na verdade não o respeito. Pois se pensarmos sem pré-conceitos, veremos que toleramos o que não está em nossa perspectiva de convivência mais próxima, ou aqueles que não nos são caros, pois ao contrário não toleraríamos, conviveríamos sem problemas de olhá-los nos olhos, não haveria tolerância, pois não haveria a possibilidade da intolerância.

A educação formal, apesar de as propostas multiculturalistas estarem na ordem do dia e em todas as rodas politicamente corretas, aparentemente, acolhe a diferença, todavia, apenas de maneira superficial, sem que haja espaço para a manifestação dessa diferença, ou esperando que ela se revele apenas como alegoria. Ou, ainda pior, acolhemo-la para demonstrar nossos bons sentimentos e uma face conectada com a diversidade da humanidade.

Há, por conseguinte, o refúgio mais confortável, o campo da moralidade, que já está dado e resguardado pelas rodas intelectuais e suas institucionalidades, com discursos já concebidos e aceitos como dentro da verdade da coisa. Ou como bem disse Larrosa “configuram a gramática discursiva de certas camadas sociais devidamente treinadas no politicamente correto”.

A escola, para Larossa, ao invés de demarcar identidades, deveria aceitar a nossa indefinição, ou, como ele diz, nosso estrangeirismo, aproveitar o que de melhor o estrangeiro nos traz, “a possibilidade de nos percebermos também estrangeiros”. Assim, o que seria tolerância, passaria a ser convivência e troca, pois teríamos a oportunidade de compartilhar nossos estrangeirismos. Entendendo que as identidades não são estáticas como nossa compreensão quer perceber, mas estão permeadas por conjunturas, acontecimentos inesperados e interações com outras identidades que podem gerar mudanças.

A convivência pressupõe espaços públicos promotores de encontros. A escola deveria ser um desses espaços, mas está cada vez mais privatizada e fechada por muros. O argumento para o fechamento é a violência urbana, mas sabemos que não é isso, ou não é só isso, o que mais querem preservar são os valores morais trazidos nos ombros há séculos. Uma das instituições que menos se permitiu mudar ao longo da história foi a escola.

A escola formal é a portadora do saber e da legitimidade de ensinar. A ela cabe acolher as crianças e os adolescentes para que eles deixem a condição de “alunos”, ou sem luz, para a condição de iluminados. Mesmo com a crise do paradigma iluminista, esta instituição não abriu mão do seu lugar, daquela que traz a luz, que ilumina. E essa instituição que ilumina, segrega e marca os diferentes ao não acolher a todos com suas diferenças, porém, com direitos iguais.

Os argumentos produzidos socialmente, aos quais me referia no início do texto, que promovem verdades, são utilizados quase sempre contra aqueles que não fazem parte do lado hegemônico da sociedade. Aqueles que muitas vezes são invisíveis, os toleráveis, mas com os quais preferimos não conviver, a não ser quando eles reforçam nosso lado multicultural.

Isso ocorre, por exemplo, quando se discute o aprofundamento da violência urbana, a falta de uma política de segurança pública e a consequente necessidade de aumentar o aparato repressivo, como única alternativa ao caos urbano causado pela marginalidade e que bateu às portas da elite e da classe média. Nesse momento, aquele invisível, torna-se muito evidente, pois se transforma em alvo que devemos atacar.

Alguém tem de ser o culpado pelas mazelas que atravessamos e, certamente, não será um dos meus, será, especialmente, aquele que me incomoda, que quero não ver, mas ele teima em aparecer na minha frente, nos espaços nos quais circulo, deixando um pouco mais cinzento o meu horizonte, causando-me culpa e mal estar, ou nem isso, apenas repugnância. Ele é o violento.

E isso justifica o fato de se defender o aumento das penas, mesmo que não tenhamos cadeias suficientes e que as existentes sejam espaços de maus tratos e desrespeito aos direitos humanos. Mas de que direitos humanos estamos falando? Essas criaturas são desprovidas de humanidade, portanto, sem direitos. Os meninos e meninas de 16 anos já são grandes o suficiente para saberem o que estão fazendo, eles tem de sentir o peso do Estado, mesmo que nunca tenham sentido sua leveza, pois não é novidade que quem cumpre pena são pobres e negros, ou negros e pobres; aqueles a quem normalmente é negado o direito a uma escola de qualidade, uma vida digna, moradia, acesso a transporte público, lazer.

Quando defendem o aumento do aparato repressivo não conseguem perceber que vivemos em uma sociedade repressiva e autoritária desde sempre e isso não resolveu o problema da violência. Prendem o Fernandinho Beiramar em uma prisão de segurança máxima e querem nos fazer crer que ele é realmente o chefão do tráfico, como se não fosse evidente que os grandes “empresários” do setor de narcóticos estão em outros espaços muito mais “ascéticos” e impunes, pois fazem parte do lado hegemônico, da verdade da coisa.

Para os adolescentes o ECA- Estatuto da Criança e do Adolescente- prevê que aqueles que cometem atos infracionais devem ficar em instituições educadoras, que mantenham atividades socioeducativas, para que o processo de amadurecimento do jovem não seja comprometido. E dizem que isso não é o suficiente, pois querem imputar-lhes penas mais severas e mais cedo, aos 16 anos, como se a parte que cabe ao Estado estivesse cumprida e que a sociedade se preocupasse em fazer o controle social dessas instituições.

Nem uma coisa, nem outra, o Estado mantém espaços desumanos, que não educam, apenas aumentam a sensação de segregação social; medidas socioeducativas são celas superlotadas, como a dos presos comuns. A sociedade sente-se aliviada, pois por um tempo ficará livre dos “elementos” e controle social é para aqueles providos de “humanidade”.

Além disso, sempre que ocorre algo com o lado hegemônico da sociedade, volta à discussão sobre a maioridade penal, ou o aumento do tempo de internação dos adolescentes, mas nunca se discute que três anos na vida de um adolescente é muito diferente que três anos na vida de um adulto. O adolescente está se socializando, descobrindo o mundo. O tempo flui com outra intensidade.

Um bom exemplo de que precisamos rever o paradigma repressivo é a quantidade de dinheiro que os Estados Unidos gastam anualmente com a repressão e combate às drogas e conseguem barrar uma quantidade pequena das drogas que entram no país. E para esse combate ultrapassam suas fronteiras e desrespeitam os seus “estrangeiros”.

É fato que desigualdade não é a causa da violência, mas pode-se dizer que a violência quase sempre é a reafirmação da desigualdade– em suas diversas formas de manifestação e não apenas desigualdade social–, a população mais vitimizada não tem espaço para manifestar-se em suas identidades, pois os espaços públicos estão cercados.

A nossa sociedade é secularmente autoritária e de dominação e quando ameaçada manifesta-se de forma violenta. Ouvi isso no seminário “Violência e segurança pública no Brasil: outros olhares, outros rumos” promovido pela ABONG, onde se falou também que temos de mudar a nossa forma de olhar, pois sempre se fala da violência associando-a a pobreza, porque não se falar da violência associando-a a riqueza, que provoca desigualdade, que por si só não é causa da violência, mas é reafirmada por ela. Assim mesmo, dessa forma circular e, para muitos, simplista.

As formas propostas para o combate à violência são sempre soltas e baseadas em visões preconceituosas, discriminatórias e de isolamento do outro. O diálogo não é promovido e a visão nunca é sistêmica, pois uma política pública de segurança pressupõe, também e principalmente, medidas preventivas que passam por ampliação de espaços de convivência e troca.

Assim como há saúde preventiva, devemos propor, Estado e Sociedade, política pública de segurança preventiva, que deve ser associada às políticas sociais, especialmente, de educação. E, como foi dito também no seminário da ABONGª, o contrário de violência não deve ser a segurança e sim a liberdade, por isso a necessidade urgente dos espaços de convivência saudáveis, entendidos aqui como espaços de promoção da sociabilidade capazes de oferecer ambiente educativo e emocionalmente seguro à convivência e à troca entre diversos outros, estrangeiros, em suas diferenças e com possibilidade de construção de outras histórias geradas a partir da interação.

*ABONG- Associação Brasileira de Organizações não Governamentais.

Cleo Manhas

 

Categoria: Artigo
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