Sem políticas de proteção, ficar em casa é seguro?

04/06/2020, às 12:44 | Tempo estimado de leitura: 8 min
Por Márcia Acioli, assessora política do Inesc
Não é o caso de abrir mão do isolamento social. O governo federal precisa apresentar, urgentemente, um programa de ações para enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes nesse período.
Foto: Daniel Edeke/Pexels

Negligência, castigos físicos, abandono, abusos, humilhação, tortura, isolamento, racismo, violência sexual, envenenamento, chantagem, privações, tráfico de órgãos, exclusão, expulsão de lares e de escolas, censura, espancamento, silenciamento, pornografia, casamento infantil… são modalidades de violência contra crianças presentes na sociedade brasileira em diferentes graus. Muitas destas práticas culminam em morte, outras em automutilação e todas produzem sofrimento.

No dia 4 de junho de 1982 a ONU estabeleceu o Dia Mundial Contra Agressão Infantil. Certamente a data nasce com o intuito de provocar indignação, reflexão, para mudar comportamentos e culturas que vitimizam milhões de crianças no mundo a cada ano.

O que está por trás dessas violências? A desumanização da criança é um modo de relacionamento entre gerações. Não são todas as culturas que desqualificam o velho e a criança, mas as que o fazem provocam estragos muitas vezes insuperáveis. O maior problema é quando a violência não é notada, pois a sua naturalização a torna imperceptível. Ela é cotidiana e muitas crianças não conhecem outro modo de estar no mundo.

Vidas de crianças negras importam

Somada à desumanização por conta da idade, quando a criança é negra, sofre as consequências do racismo cometidas pela sociedade que privilegia as elites brancas que se recusam a compartilhar a condição humana com pessoas negras, indígenas e ciganas. Crianças negras experimentam a violência racial nas ruas, escolas, parquinhos e hospitais, ora sendo agredidas, ora sendo negligenciadas. Meninos e meninas negras são violentados diretamente a ponto de não se sentirem seguros para ir à escola ou perderem perspectivas de afeto. O adolescente negro é logo visto como delinqüente, marginal ou traficante, sendo frequentemente abordado pela polícia, muitas vezes como vítimas fatais ou mesmo submetido a terríveis castigos físicos e psicológicos, como o garoto torturado nu no Supermercado Ricoy em São Paulo (2019). A menina negra é frequentemente abordada pela sua sexualidade e tratada como pequena prostituta, como o caso em que uma juíza condenou uma adolescente de 15 anos a ficar presa em uma cela com 30 homens adultos – Abaetetuba, Pará (2007) onde sofreu obviamente as mais bárbaras violências sexuais.

Enfim, o cenário nos indica que é preocupante o quadro de violência contra crianças e adolescentes. Há uma certa naturalização da violência e culpabilização da vítima, fato que se percebe nos grupos socialmente mais excluídos que demandam proteção específica, como crianças e adolescentes  negras, indígenas e ciganas.

Sem presente, à espera do futuro

Nos discursos institucionais a infância é tratada como um ‘vir a ser’ como se não existissem hoje e a sua importância social está apenas na sua condição futura, como se suas vidas estivessem condicionadas a um inatingível depois. Falta-lhes o reconhecimento como cidadãs hoje. Desprezadas, acabam sendo alvos fáceis dos desmandos e das perversidades dos adultos.

Relatório Covid-19 Aftershocksda Visão Mundial, organização cristã de desenvolvimento e resposta às situações de emergência,estima que até 85 milhões de crianças e adolescentes no mundo estão vulneráveisa sofrer violência no período da pandemia da Covid-19. O aumento representa em torno de 20% a 32% da média atual,de acordo com as estatísticas oficiais – uma alta atribuída às medidas de isolamento social que visam frear o avanço do novo coronavírus no mundo.

Violência em casa

No Brasil, quase 70% da violência sexual contra crianças no Brasil ocorre nas casas das vítimas e 34 % em caráter de repetição, segundo o Boletim Epidemiológico 27 (2018) do Ministério da Saúde. Nota-se, portanto, que a prática é habitual na medida em que há registros da recorrência. Considerando que crianças encontram muita dificuldade em fazer uma denúncia, seja por medo, insegurança, desconhecimento ou constrangimento,sabemos que lidamos com uma realidade muito mais desafiadora do que mostram os dados.

A informação nos alerta ao fato de que ao proteger da pandemia, é provável que estejamos submetendo crianças e adolescentes a um outro perigo. Mais uma tragédia anunciada.Sabendo disso, é imperativo que se apresente urgentemente um plano de proteção, redução de riscos. Não é o caso de se abrir mão do isolamento social. A questão é assegurarproteção no sentido mais amplo, é a proteção concebida peloEstatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sobre o direito ao respeito:

Artigo 17 – O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

Ainda levando em conta a legislação brasileira sobre os direitos da criança e do adolescente, o direito à saúde preconiza:

Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.

Não é o caso de um direito em detrimento do outro. O isolamento social é comprovadamente a forma mais eficaz para a proteção contra a contaminação pelo novo coronavírus. Portanto, as crianças e os adolescentes devem estar duplamente protegidos.

A proteção integral, fundamento do Estatuto da Criança e do Adolescente, requer todos os direitos ao mesmo tempo. Diante do desafio, perguntamos o que o governo federal propõe para minimizar o risco da violência em casa?  A depender do orçamento público não há perspectivas.

Em 2019 apesar de ter um valor ínfimo para enfrentar violências contra crianças e adolescentes, nada foi gasto. Sem orçamento não há política pública.

O governo federal precisa apresentar, urgentemente, um programa de ações para enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes nesse período. Esse é um momento ainda mais oportuno para realizar campanhas e formações que dialoguem sobre o que é violência e sobre prevenção, sobre como garantir a segurança de crianças e adolescentes, como e onde denunciar de forma protegida.

A educação é elemento chave para a redução da violência contra crianças que deve vir articulada com programas de suporte às famílias para redução do estresse. Defendemos uma educação que assegure adultos preparados e instituições dispostas a novas formas de relação intergeracional onde se exercite diariamente a arte do diálogo e do respeito e crianças educadas para serem plenas.

Categoria: Artigo
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