Contra o cinza do medo, colorir as ruas: por uma cidade transformada pelas mulheres

13/03/2019, às 14:37 (atualizado em 16/03/2019, às 22:58) | Tempo estimado de leitura: 8 min
Por Leila Saraiva, assessora política do Inesc
Uma mesma cidade é, na verdade, várias - a depender do corpo que a experimenta
Por uma cidade transformada pelas mulheres

Você já parou para pensar como caminha por sua cidade? Que sentimentos, afetos e procedimentos passam por sua cabeça antes de sair de casa e enfrentar a rua?  Como você decide a sua rota de deslocamento diário? Por quais locais escolhe ou não passar? E antes de entrar no transporte coletivo, que critérios passam pela sua cabeça? Como, afinal de contas, você vive e se move por sua cidade?

É possível que, para alguns, tais perguntas pareçam despropositadas. Vive-se a cidade como dá para viver, oras. Não há muito a refletir: as escolhas são pautadas pelo que parecem cálculos racionais. A rota de deslocamento escolhida é a que gasta menos tempo. Passa-se nos locais necessários para que o trajeto seja mais rápido. Toma-se o ônibus que passar mais rápido, ou quem sabe o que estiver menos cheio. A rua não se enfrenta, se percorre.

Se você se identificou com as respostas acima, imagine que, de repente, tudo deve ser feito diferente. Ao invés de escolher a rota mais rápida, você passa a percorrer caminhos mais longos. Passa a pensar bem em cada um dos locais em seu trajeto, avaliando-os meticulosamente. Passa a não tomar necessariamente o ônibus mais rápido e, quem sabe, até escolha parar num ponto mais longe do que aquele perto da sua casa. Um exercício imaginativo absurdo? A realidade cotidiana de boa parte das mulheres brasileiras.

O cotidiano das mulheres

Segundo pesquisa realizada pela Action Aid, 73,9% das mulheres brasileiras já desviaram seu trajeto por conta da escuridão da rua; 70,6% já deixou de sair de casa em determinados horários por conta do receio de sofrer algum tipo de violência ou assédio e, para 15% delas, o desvio de trajeto e interdição de horários acontece todos os dias.

Ao utilizar o transporte público, 57,8% das mulheres tem critérios bastante específicos para escolher os veículos que utilizam: 26, 6% não entram em ônibus lotados e, ao mesmo tempo, 13,6% não se arriscam em ônibus vazios. Quando dentro do veículo, há ainda outras preocupações: 54% das mulheres entrevistadas evita sentar no fundo, e 39,6% delas não senta perto de homens.

Mas o que será que transforma o ato cotidiano de se mover pela cidade em um leque de escolhas estranhas, inclusive, contraditórias entre si? O que faz certos locais e horários serem proibidos? O que faz com que ao mesmo tempo em que se deixa passar os ônibus cheios também não se entre em ônibus vazios? O que torna alguns assentos do transporte interditos?

Mesma cidade, diferentes experiências

Ícone do espaço capitalista, a cidade não escapa, mas reinventa suas contradições e desigualdades estruturais. A vivência na rua é marcada por conflitos, disputas, emaranhados de relações que revelam e refazem as hierarquias constituintes de nossa sociedade.  Em outras palavras, uma mesma cidade é, na verdade, várias –  a depender do corpo que a experimenta. Um homem negro que, ao encontrar uma viatura, automaticamente se prepara para a revista policial não vive a cidade do homem branco que respira aliviado ao se deparar com o mesmo carro. Também homens e mulheres (e, entre elas, toda a diversidade que constrói essa categoria) não experimentam a mesma urbanidade.

Nas cidades em que vivemos, uma das marcas da experiência das mulheres é o medo – não apenas o medo de assalto, mas principalmente da violência sexual. O sentimento não é descabido: segundo pesquisa do IPEA, entre os crimes de estupro contra vítimas adultas, 60% deles são praticados por desconhecidos, entre 18h e 6h da manhã, sobretudo nas vias e espaços públicos. A possibilidade real do estupro está ali, todo dia, pautando as escolhas de caminhos, trajetos, horários e veículos a serem utilizados nas ruas, transformando o ato de caminhar em um jogo de estratégias.

Junto à ameaça de estupro estão também outros gestos, aparentemente menores, que atualizam o corpo feminino na rua não como corpo-sujeito, mas corpo-objeto e reafirmam o não pertencimento das mulheres ao espaço urbano. As cantadas e assédios vivenciadas por ao menos 56,9% das mulheres brasileiras, segundo pesquisa já citada da Action Aid, são uma espécie de aviso: corpos femininos são passíveis de invasão se decidem circular na cidade. Os assédios, assim como o medo, servem como demarcação de territórios: se as ruas são perigosas para mulheres, insistir em andar por elas é aceitar as regras do jogo, ou seja, submeter-se às possibilidades de intromissão masculina. Quem avisa amigo é.

Colorir as ruas

Mas e se, em vez de pensarmos novos percursos, deixarmos de sair depois de certa hora, evitarmos tais rotas ou veículos, nós decidíssemos desobedecer? Parássemos de escutar os alertas, os avisos, as ameaças e as cantadas, e simplesmente optássemos por ocupar as ruas?

Difícil imaginar essa ousadia enquanto resolução individual, posto que também o problema está longe de sê-lo. Mas, pensemos bem: é exatamente a possibilidade desse mundo que criamos quando, deliberadamente, enchemos as ruas das cidades com mulheres em marcha, tal como fizemos no último dia 8 de março.

Em nossa multiplicidade de corpos e formas de estar no mundo, pintamos pouco a pouco a cidade de outros tons. Não mais o cinza do medo, mas o colorido das nossas existências. Não mais o cuidado frente à ameaça, mas o cuidado entre nós. Não mais uma cidade feita por homens, mas o espaço urbano transformado por nossa presença – do corpo-objeto aos corpos políticos. Se as opressões fazem de uma cidade muitas, não deixemos o poder todo para eles: cada vez que uma marcha de mulheres toma as ruas, um mundo sem machismos se refaz possível.

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Categoria: Artigo
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