Consideração sobre o orçamento indigenista federal

07/07/2011, às 16:25 | Tempo estimado de leitura: 18 min
Por Ricardo Verdum - assessor político do Inesc

07 de julho de 2011

Ricardo Verdum – Antropólogo, assessor de políticas públicas no Instituto de Estudos Socioeconômicos. verdum@inesc.org.br

Este texto pretende ser um breve informe da execução do Orçamento Indigenista do Governo Federal em 2010, inscrito no Plano Plurianual (PPA) 2008-2011.

Além da dotação orçamentária e dos créditos adicionais que, anualmente, o governo federal disponibiliza ao órgão indigenista via Lei Orçamentária Anual (LOA), à FUNAI é atribuída legalmente a responsabilidade de administrar a renda obtida do Patrimônio Indígena. Pela prestação deste “serviço” aos povos indígenas a FUNAI incorpora ao seu patrimônio o chamado dízimo, ou seja: a décima parte ou o equivalente a 10% da renda líquida anual obtida do Patrimônio Indígena. Mas como não faz parte da nossa tarefa apresentar aqui uma completa descrição da composição desse processo, que foge aos nossos interesses neste momento, voltemos ao assunto principal do texto.

Os programas e as ações do orçamento indigenista

No PPA 2004-2007 os projetos e ações do governo federal destinadas especificamente aos povos indígenas estiveram concentrados em dois programas: (a) Identidade Étnica e Patrimônio Cultural dos Povos Indígenas e (b) Proteção de Terras Indígenas, Gestão Territorial e Etnodesenvolvimento.

O primeiro agrupou as ações dos setores saúde indígena (Fundação Nacional de Saúde), educação escolar indígena (Ministério da Educação e Fundação Nacional do Índio) e as de caráter assistencial (Fundação Nacional do Índio e Ministério do Desenvolvimento Agrário). No ano de 2005 foi incluída nesse programa a ação Realização dos Jogos dos Povos Indígenas, sob a responsabilidade do Ministério dos Esportes. No período 2006/2007 esse programa contou com trinta ações, sendo vinte implementadas pela FUNAI/MJ.

No segundo programa foram reunidas as ações de regularização fundiária e proteção das terras e territórios indígenas (Fundação Nacional do Índio), as voltadas para a promoção da gestão sustentável dos territórios e recursos naturais ai existentes e aquelas que se destinavam à geração de alternativas econômicas para as comunidades locais (Fundação Nacional do Índio e Ministério do Meio Ambiente). Esse programa teve no período 2006/2007 doze ações, nove implementadas pela FUNAI/MJ.

No PPA 2008-2011 as ações desses dois programas foram agrupadas no programa Proteção e Promoção dos Povos Indígenas; como no anterior, coube a FUNAI a responsabilidade por articular e coordenar a política indigenista e o conjunto das ações contidas nesse Programa.

O novo PPA é orientado por dez objetivos estratégicos, mas somente em um único objetivo estratégico são mencionados explicitamente os povos indígenas, é o que se destina a “fortalecer a democracia, com igualdade de gênero, raça e etnia, e a cidadania com transparência, diálogo social e garantia dos direitos humanos”. Nos demais nove objetivos estratégicos os direitos dos povos indígenas estão formalmente ausentes. Esse é o caso do objetivo de “implantar uma infraestrutura eficiente e integradora do território nacional”, ao qual estão vinculados 42 programas e onde estão concentradas as ações que mais têm impacto nos territórios e as populações locais. Em nenhum momento é feita referência a necessidade de respeito às territorialidades indígenas e à sua autonomia no tocante aos processos decisórios, numa visível afronta ao disposto na Constituição Federal de 1988, na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007). Ao contrário, é afirmado que como parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) serão implementadas medidas destinadas a agilizar e facilitar a implantação de investimentos (públicos e privados) em infraestrutura.
Embora no PPA 2008/2011 seja mencionado, explicitamente, que os povos indígenas são beneficiários de ações em sete programas, somente em três há um orçamento específico, são eles: Educação para a Diversidade Cultural; Saneamento Rural; e Proteção e Promoção dos Povos Indígenas.

O programa Proteção e Promoção dos Povos Indígenas é tão ambicioso quanto genérico no jogo de palavras, a começar pelo objetivo: “garantir aos povos indígenas a manutenção ou recuperação das condições objetivas de reprodução de seus modos de vida e proporcionar-lhes oportunidades de superação das assimetrias observadas em relação à sociedade brasileira em geral”. Considerando a estrutura social e econômica brasileira e a onda desenvolvimentista que inunda o país, acrescidas da assimetria política que caracteriza a relação dos agentes públicos e privados responsáveis pela definição das prioridades governamentais com os povos indígenas, é pequena a nossa expectativa em relação a que possam ser evitados, de forma eficaz e efetiva, os impactos globais decorrentes das inúmeras obras de infraestrutura previstas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-2). Estima-se que o PAC terá impacto em 182 Terras Indígenas, atingindo ao menos 108 povos. O caso Belo Monte é ilustrativo dessa estrutura e conjuntura particulares, onde o problema colonial continua se impondo à nossa atenção, tanto quanto a categoria de colonialismo interno.

A seguir apresentamos um quadro resumido da despesa dos quatro ministérios com dotação orçamentária no programa Proteção e Promoção dos Povos Indígenas. Os números ai apresentados dizem respeito somente às chamadas ações finalísticas, aquelas que proporcionam um bem ou um serviço diretamente aos indígenas . É possível verificar que no período 2008-2010 foi gasto pelo Governo Federal nos quatro ministérios cerca de R$ 1,955 bilhão. Esse valor equivale a aproximadamente 90,49% do que foi autorizado pelo Congresso Nacional para ser gasto nos três anos, o que significa dizer que aproximadamente R$ 205,5 milhões deixaram de ser gastos, retornando ao Tesouro Nacional.

Programa Promoção e Proteção dos Povos Indígenas: O gasto em 2008-2010

Tabela 1 artigo Ricardo Verdum

No caso do Ministério da Saúde/FUNASA não está incluído nos valores acima o recurso da ação de Saneamento básico em aldeias indígenas, que integra o programa Saneamento Básico. No período de 2008-2010 o governo federal orçou para essa ação um investimento total (em valores corrigidos) de R$ 179,506 milhões, mas gastou cerca de R$ 156,349 milhões. A diferença total, R$ 23,157 milhões, retornou ao Tesouro Nacional. No lançamento do PPA 2008-2011 foi anunciada para o período a meta de 1.346 aldeias indígenas com cobertura de abastecimento de água.

Em 2010 a FUNASA deixou de investir na estruturação de unidades de saúde para atendimento da população indígena cerca de R$ 19,357 milhões; também R$ 27,139 milhões previstos para serem utilizados na promoção, vigilância, proteção e recuperação da saúde indígena, e mais R$ 987,8 mil que se destinavam a ação de vigilância e segurança alimentar e nutricional dos povos indígenas. Todo esse recurso retornou ao Tesouro Nacional, alimentando a meta de superávit do país.

Em decorrência da crescente perda de legitimidade e confiança que se abateu sobre a FUNASA, decorrência das inumeráveis denúncias comprovadas de corrupção e do mau uso dos recursos financeiros destinados a atenção primária à saúde indígena, situação a que se somaram pressões desencadeadas pelos povos indígenas nos diferentes níveis (local, distrital e federal), exigindo a criação de uma Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) no âmbito do Ministério da Saúde, o Governo Federal publicou o Decreto nº 7.336, de 19 de outubro de 2010. Segundo o que estabelece o decreto, o Ministério da Saúde e a própria FUNASA teriam 180 dias para fazer a transição gradual do sistema, “a fim de evitar prejuízos ao atendimento da população”. No dia 19 de abril de 2011, o governo federal publicou decreto prorrogando a transição até 31 de dezembro de 2011.

Reconhecimento e garantia territorial

A Agenda Social dos Povos Indígenas (2008-2010) lançada pelo presidente Lula da Silva em setembro de 2007, havia previsto demarcar 127 Terras Indígenas. Segundo dados levantados junto a FUNAI, foram emitidos nesse período apenas 13 decretos homologatórios do Presidente da República e somente 29 Terras Indígenas obtiveram portaria declaratória do Ministro da Justiça. Ou seja, os números ficaram bastante aquém da meta estabelecida e formalmente anunciado, em 2007, pelo presidente Lula da Silva.

Em 2010, na ação de Demarcação e regularização de terras indígenas, foram gastos apenas 47,51% dos R$ 25 milhões orçados e a ação de Fiscalização de Terras Indígenas não contou nesse ano com qualquer recurso financeiro. Em 2010 houve apenas três (3) homologações e somente dez (10) Terras Indígenas tiveram a portaria declaratória publicada.

Mulheres indígenas

No PPA 2008-2011 as mulheres indígenas não contaram com uma ação orçamentária específica. Por outro lado, foi criada ainda em 2007 uma coordenação específica de mulheres indígenas no âmbito da FUNAI, que contou com recursos suficientes para realizar entre setembro de 2008 e agosto de 2010 treze seminários-oficinas regionais com o tema a violência familiar e doméstica no contexto indígena e a aplicabilidade da Lei Maria da Penha.

Comunidades isoladas

Além da ação de Localização e proteção de povos indígenas isolados ou de recente contato implementada pela FUNAI, que em 2010 contou com um orçamento aprovado de R$ 2 milhões, dos quais foram gastos 90,24%, o Comando da Aeronáutica teve disponível nesse ano um orçamento de R$ 1,5 milhões para a ação de Assistência às comunidades indígenas isoladas em regiões da Fronteira Norte (Calha Norte).

Contribuição ao Instituto Indigenista Interamericano

Nos anos de 2009 e 2010 foi prevista nas respectivas Leis Orçamentárias uma contribuição financeira do governo brasileiro, via Ministério das Relações Exteriores (MRE), ao Instituto Indigenista Interamericano (III), organização vinculada a Organização dos Estados Americanos (OEA). Essa contribuição foi prevista no programa Gestão da Participação em Organismos Internacionais com os seguintes valores: R$ 161.739 em 2009; e R$ 192.951 em 2010. Para ambos os anos consta que o recurso não foi repassado ao Instituto.

Outras ações

Considerados grupo vulnerável e/ ou segmento prioritário de políticas de proteção e inclusão social, os povos indígenas se beneficiaram de outro conjunto de políticas e ações do governo federal. O Ministério das Minas e Energia (MME), por exemplo, informa que o Programa Luz para Todos já beneficiou ao total cerca de 24,4 mil famílias indígenas.

Como parte da Agenda Social dos Povos Indígenas, lançada pelo presidente Lula da Silva em setembro de 2007, o Ministério da Cultura (MinC) estimulou e apoiou a criação de pontos de cultura em aldeias nos territórios indígenas reconhecidos e demarcados pelo Estado. Também foram beneficiadas associações de indígenas que vivem em centros urbanos. A Agenda estabeleceu como meta para o período 2008-2010 implantar 150 pontos de cultura em Terras Indígena. O MinC também criou um sistema de premiação, o Prêmio Culturas Indígenas, voltado a valorizando e revitalização de práticas e expressões culturais dos povos indígenas. Criado pelo MinC em 2006, até dezembro de 2010 foram premiadas 276 comunidades e organizações indígenas.
A Secretaria de Direitos Humanos (SDH/PR) em parceria com a FUNAI incluiu os indígenas na agenda social de registro civil de nascimento e documentação básica (Registro Geral, Cadastro Pessoa Física e Carteira de Trabalho e Previdência Social) como parte da política de inclusão social dos indígenas a partir da documentação civil.
Os indígenas também foram incluídos como beneficiários da principal ação de transferência monetária condicionada (TMC) no país, o Programa Bolsa Família (PBF), iniciado no ano de 2003 e peça-chave na agenda de combate à pobreza do governo federal. Em janeiro de 2011 havia 84.796 famílias indígenas atendidas pelo Programa, sendo 20 mil cadastradas em 2010. Cerca de 48.600 famílias indígenas de 18 estados eram beneficiadas com cestas de alimentos. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) já soma 339 o número de Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) que atendem indígenas no país.

Também foi estabelecido como objetivo promover a criação de territórios da cidadania em terras indígenas, começando pelos territórios indígenas no Alto Rio Negro e Vale do Javari, no estado do Amazonas, e Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Não obstante esse conjunto de ações, o I Inquérito Nacional de Saúde dos Povos Indígenas, realizado em 2008-2009 pela FUNASA com recursos do Banco Mundial e executado pela Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde (ABRASCO), com objetivo de descrever a situação alimentar e nutricional e seus fatores determinantes em crianças indígenas menores de 5 anos e em mulheres indígenas de 14 a 49 anos no Brasil, mostrou um quadro nada promissor em praticamente todas as regiões do país. Os dados e avaliações ali contidas colocam em cheque a necessidade de redirecionar e adequar várias dessas políticas e ações, assim como os Programas de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Comentário final

O ano de 2011 é o último ano do PPA 2008-2011 e o ano de elaboração do PPA 2012-2015. Infelizmente ainda não vemos no interior do movimento indígena organizado ser dado ao assunto a importância que merece. É compreensivo que assim seja, é um assunto complexo, do qual os povos indígenas foram sempre excluídos, que demanda certa dedicação e especialização etc. Por outro lado, ainda que os discursos oficiais recentes estejam repletos de palavras como promoção, participação, autonomia, transparência e outras do gênero, na prática isso ainda não ocorre nem é estimulado quando o assunto é planejar, decidir e controlar o orçamento público.

 

 

 

 

 

 

Categoria: Artigo
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