Combate às mudanças climáticas deve ser prioridade do 3° Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

Entre os dias 11 e 14 de dezembro acontece, em Brasília, a 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional que resultará em recomendações para a elaboração do 3º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Diante dos tempos dramáticos que vivemos, dos fortes impactos decorrentes do aquecimento global, não há nada mais urgente do que outorgar prioridade máxima ao combate às mudanças climáticas. Isso porque,a forma de produzir e consumir alimentos não somente é impactada pelos efeitos dos eventos extremos, como secas e enchentes, mas é também a causa, especialmente quando se trata de práticas agrícolas que envolvem desmatamento e a destruição de modos de vida sustentáveis.

A 6ª Conferencia irá reunir na capital federal mais de duas mil pessoas de todo o país, entre representantes de organizações e movimentos sociais e de governos – federal, estaduais e municipais. Entre plenárias, grupos de trabalho e atividades autogestionadas serão construídas, coletivamente, propostas que irão orientar a atuação do poder público nos próximos anos.

6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

Com o lema “Erradicar a fome e garantir direitos com comida de verdade, democracia e equidade”, o principal objetivo da Conferência é fortalecer os compromissos políticos com a realização do direito humano à alimentação adequada, por meio de políticas públicas de segurança e soberania alimentar e nutricional inclusivas, antirracistas, antipatriarcais e sustentáveis.

A 6ª Conferência Nacional é a última etapa de várias outras referentes a conferências municipais, estaduais, territoriais e livres, entre outras. Milhares de pessoas, em todo o país, vêm discutindo há meses como elaborar e implementar, de forma participativa, ações que garantam que a população brasileira possa se alimentar adequadamente.

Esse processo é fundamental para a saúde da democracia, pois possibilita não somente o debate público, como a incorporação no fazer do Estado de recomendações construídas coletivamente desde o local até o nacional. Assim, as ideias e as práticas são revisitadas, arejadas e alimentadas com novos e múltiplos olhares.

Crise climática gera insegurança alimentar

A 6ª Conferência acontece em momento estratégico, quando o mundo deve atuar para impedir a destruição da vida na Terra. O ano de 2023 é o mais quente da história e os efeitos das mudanças climáticas se fazem sentir de forma dramática no país, com seca na Amazônia e enchentes no Sul. Esses eventos extremos são resultado do aquecimento global e impactam consideravelmente a situação alimentar da população, especialmente da mais vulnerabilizada, isto é, mulheres, população negra e periférica, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, agravando as desigualdades.

O impacto das mudanças climáticas na alimentação é imediato e se manifesta de diversas formas. O aumento da temperatura provoca secas cada vez mais intensas e frequentes e grandes tempestades e inundações que resultam em quebra de safras, na diminuição da produção de alimentos e no aumento de seus preços, gerando fome. A combinação de baixa oferta de alimentos in natura com preços elevados contribui para aumentar a busca por produtos ultraprocessados, o que traz à tona outra vertente da insegurança alimentar e nutricional: o sobrepeso e a obesidade.

Neste momento, o Brasil é triste cenário dos perversos efeitos do aquecimento global, pois vivencia uma terrível seca na Amazônia e chuvas torrenciais no Sul com mortes e milhares de pessoas afetadas. Os efeitos na situação alimentar da população são graves e de longo prazo, pois impactam a produção agrícola, a infraestrutura de transporte, armazenamento e distribuição de alimentos, a queda da renda devido ao aumento do desemprego, entre outros.

Ou seja, as mudanças climáticas possuem estreita relação com a alimentação inadequada e com a insegurança alimentar e nutricional: desnutrição, carências nutricionais específicas, sobrepeso e obesidade. O Brasil convive atualmente com o seguinte paradoxo: de um lado, 33 milhões de pessoas passando fome e, de outro, mais de 40 milhões de pessoas obesas. A crise climática e sua retroalimentação com a fome, a desnutrição e a obesidade são um grande risco para a humanidade, num processo chamado de sindemia global.

Agropecuária: ameaça ou solução?

Importante destacar que a agropecuária pode ser tanto uma ameaça quanto uma solução para combater as mudanças climáticas. Apesar dos aumentos de produtividade, a expansão do agronegócio no Brasil ainda é a grande responsável pelo desmatamento, sendo uma das principais fontes de emissões de gases de efeito estufa. Além disso, a produção de carne bovina emite metano, outra causa do aquecimento global.

Por outro lado, a agricultura sustentável, combinada com mudanças na dieta, pode compatibilizar a produção de alimentos saudáveis com o combate às mudanças climáticas. Para tal é necessário, acabar com o desmatamento; restaurar as florestas; redistribuir terras e territórios; respeitar os modos de vida dos povos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais; fortalecer a agricultura familiar; adotar a agroecologia como modelo de produção; implementar uma política de abastecimento baseada em circuitos curtos, que aproximam o produtor do consumidor de alimentos; expandir a agricultura urbana e os equipamentos urbanos de segurança alimentar e nutricional; diminuir drasticamente a produção e o consumo de ultraprocessados; e combater o racismo, o patriarcado e toda forma de opressão, entre outras medidas. É preciso ainda, aprofundar os estudos que especifiquem melhor a relação entre mudanças climáticas e insegurança alimentar, identificando caminhos que possam nos ajudar a interromper esses círculos viciosos.

Ainda é possível frear a destruição

É necessário, ainda, pressionar os governos de todo o Planeta para que implementem acordos efetivos de contenção do aquecimento global mas, também, de reparação e adaptação dos efeitos perversos das mudanças climáticas, especialmente dos países do Sul. São as nações empobrecidas as que menos contribuem para o desequilíbrio climático da Terra, mas são as mais afetadas pelas suas consequências. Relatório recente da Oxfam alerta que, em 2019, o 1% mais rico da população mundial (77 milhões de pessoas) foi responsável por 16% das emissões globais de dióxido de carbono (CO2), um dos principais gases do efeito estufa. Esse valor equivale a mesma quantidade emitida pelos 66% ou dois terços mais pobres da humanidade (5 bilhões de pessoas).

Ainda é possível conter a crise climática com aumento de somente 1,5°C até o final do século 21, mas isso exige esforços enormes para a diminuição da emissão e o aumento do sequestro de gases de efeito estufa da atmosfera. Isso requer o forte e radical compromisso dos governos com o tema para, de fato, por em marcha outra forma de produzir e consumir que nos permita viver em harmonia com a natureza. Se não houver ação imediata, será tarde demais. O aquecimento global não deixará nenhuma parte do globo intacta.

Esse deve ser o mote do 3º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Não há nada mais urgente do que combater as mudanças climáticas.

 

*A 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional tem o apoio do Inesc e patrocínio do Instituto Ibirapitanga, Itaipu Binacional e Banco do Brasil.

Fome e clima: uma relação tumultuada

O Dia Mundial da Alimentação é também uma data para se pensar as mudanças climáticas. O aumento da temperatura provoca secas cada vez mais intensas e frequentes e grandes tempestades que podem resultar na quebra de safras, na diminuição da produção de alimentos e no aumento de seus preços, gerando fome. Portanto, se o 16 de outubro nos remete a vitórias, como a implementação do Plano Brasil sem Fome, a efeméride é bastante oportuna para tratarmos dos imensos desafios socioambientais.

Enquanto a Amazônia enfrenta uma de suas piores secas, o Sul do País é profundamente afetado por chuvas intensas e enchentes. Esses eventos extremos são resultado do aquecimento global, consequência da ação humana predatória, e impactam consideravelmente a situação alimentar da população, especialmente da mais vulnerabilizada. A combinação de baixa oferta de alimentos in natura com preços elevados contribui para aumentar a busca por produtos ultraprocessados, o que traz à tona uma outra vertente da insegurança alimentar e nutricional: o sobrepeso e a obesidade.

O Brasil convive atualmente com o seguinte paradoxo: de um lado, 33 milhões de pessoas passam fome e, de outro, há mais de 40 milhões de pessoas obesas. A crise climática e sua retroalimentação com a fome, a desnutrição e a obesidade são um grande risco para a humanidade, num processo chamado de sindemia global.

Mudanças climáticas

Importante destacar que a agropecuária pode ser tanto uma ameaça quanto uma solução para combater as mudanças climáticas. Apesar dos aumentos de produtividade, a expansão do agronegócio no Brasil ainda é a grande responsável pelo desmatamento, sendo uma das principais fontes de emissões de gases de efeito estufa. Além disso, a produção de carne bovina é responsável pela emissão de metano, outra causa do aquecimento global.

Por outro lado, a agricultura sustentável, combinada com mudanças na dieta, pode compatibilizar a produção de alimentos saudáveis com o combate às mudanças climáticas. Para tal é necessário, acabar com o desmatamento; restaurar as florestas; redistribuir terras e territórios; respeitar os modos de vida dos povos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais; fortalecer a agricultura familiar; adotar a agroecologia como modelo de produção; implementar uma política de abastecimento baseada em circuitos curtos, que aproximam o produtor do consumidor de alimentos; expandir a agricultura urbana; diminuir drasticamente a produção e o consumo de ultraprocessados, entre outras medidas. É preciso ainda, aprofundar os estudos que especifiquem melhor a relação entre mudanças climáticas e insegurança alimentar, identificando caminhos que possam nos ajudar a interromper esses círculos viciosos.

Por ora, seguimos assistindo à transformação do clima afetando bilhões de pessoas, em especial as empobrecidas. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sua sigla em inglês), cerca de 3,3 bilhões de pessoas são vulneráveis às consequências do aquecimento global e as pessoas têm hoje 15 vezes mais probabilidades de morrer devido a condições meteorológicas extremas do que no passado.

Ainda é possível conter a crise climática com aumento de somente 1,5°C até o final do século 21, mas isso exige esforços enormes para a diminuição da emissão e o aumento do sequestro de gases de efeito estufa da atmosfera.

Isso requer o forte e radical compromisso dos governos com o tema para, de fato, pôr em marcha uma outra forma de produzir e consumir que nos permita viver em harmonia com a natureza.

Esperançar a solidariedade: relato sobre o 1º Fórum Interconselhos

O 1º Fórum Interconselhos realizado em Brasília (DF) em abril deste ano, poderia ser mais um importante evento como tantos outros, não fosse o momento histórico e político vivido no Brasil. O golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff e a sociedade brasileira foi  marcado pelo início de um projeto político que teve como um dos operadores centrais a redução dos espaços de participação social. Chegamos ao auge na eleição de Jair Bolsonaro e o cumprimento da promessa de extinção e desfinaciamento de todos esses espaços. Sim, os poucos Conselhos que continuaram “funcionando” nos últimos quatro anos o fizeram por serem frutos de legislações específicas, portanto com uma institucionalidade mínima que garantiram a continuidade da existência, como foi o caso do Conselho Nacional de Saúde, do Conselho Nacional de Direitos Humanos e alguns outros. 

Mas como todos sabemos, sobreviver e viver, são instâncias diferentes quando estamos falando da vida. A existência dos Conselhos, que era garantida por força de Lei, não significou que as condições para o seu pleno funcionamento estavam garantidas. Ao contrário, o que vivenciamos, lutando de forma aguerrida tentando encontrar brechas no desgoverno, foi a total falta de recursos humanos, materiais e financeiros para que os espaços de participação social pudessem exercer a função que é prerrogativa: a participação popular. Muitas e muitos de nós se mantiveram nesses espaços, não por acreditarem no projeto político que estava em curso, mas para resistir a ele. Outras optaram por não estar. Numa luta – como ensinam as que vieram antes de nós – precisamos daqueles que lutam estando fora, tanto quanto daqueles que travam a luta do lado de dentro. Ninguém é dispensável na luta. Foi “escrevivendo” essa página da história fazendo da atacada solidariedade um ato político, resistimos, mesmo que não sem sequelas!   

Esse preâmbulo foi necessário para transmitir um pouco do que significou esses dois dias de encontro, que contou com centenas pessoas representando diversos Conselhos de todo o Brasil, entre aqueles que estão formalmente constituídos e outros que mantiveram alguma atividade e que estão em processo de retomada. E como não temos tempo a perder, a função desse primeiro Fórum foi a largada de um processo, que precisa ser amplo, de retomada da participação social brasileira. Sim, tudo o que vivemos nos demonstrou a necessidade de consolidação de um Sistema Nacional de Participação Social, com condições estruturais e estruturantes, que garanta à sociedade brasileira mais um importante passo da nossa jovem democracia. 

Somos Conselheiras e Conselheiros conscientes dos desafios a serem enfrentados diante dos fundamentalismos religioso e político que continuam atuantes, bem como dos esforços na construção de uma frente ampla necessária para enfrentar a barbárie. Diria que o nosso principal desafio é, justamente, dar um passo além, construir espaço para possibilidades de invenções de outras formas de participação, ao mesmo tempo em que reconstruímos aqueles que são historicamente importantes, mas que também precisam de novas bases e referências. 

Durante a programação do Fórum, o presidente Lula empossou 68 representantes de organizações da sociedade civil, em maioria àqueles que  participaram dos Grupos de Trabalho durante a transição, como foi o caso do  Conselho de Participação Social instituído pelo Decreto nº 11.406, de 31 de janeiro de 2023. São mulheres, homens, pessoas negras, quilombolas, indígenas, periféricas e LGBTQIAP+, que têm como atribuição “assessorar o Presidente da República na interlocução com as organizações da sociedade civil e com a representação de movimentos sindicais e populares, bem como promover o diálogo com a Secretaria Geral da Presidência da República, de modo a ampliar a participação social na formulação, na implementação, no monitoramento e na avaliação de políticas públicas”

Na primeira reunião realizada com as pessoas diversas que integram esse espaço, questões caras à sociedade civil progressista e movimentos populares já se anunciaram como fundamentais para as construções e debates desse momento: 

  1. o empenho de todas e todos no combate à fome e à extrema pobreza que assolam o Brasil; 
  2. o comprometimento na construção do Plano Plurianual (PPA) 2024/2007, como primeiro passo de um amplo projeto político de participação, de forma solidária, justa e sustentável, e que espelhe as necessidades de defesa, garantia e proteção dos segmentos sociais mais vulnerabilizados do país, como é caso das pessoas negras, quilombolas, indígenas, periféricas e LGBTQIAPN+;
  3. na construção da Política Nacional de Participação Social tão necessária para evitar que episódios devastadores como o dos últimos anos se repita. 

Nos preocupa o fato de o Conselho ter sido criado por decreto e não por uma Lei, deixando-o em um espaço frágil, que pode facilmente ser destruído por um governo que não tenha como orientação a participação social. Nosso aprendizado dos últimos anos deve ser a bússola para os próximos passos. Precisamos ficar atentas e atentos. 

Sem nenhuma ingenuidade sobre os limites e desafios advindos da articulação política da nossa atual gestão numa frente “amplíssima”, nos importa definir quais são, para nós da sociedade civil, pautas e bandeiras inegociáveis. São direitos que não aceitamos que façam parte de nenhuma mesa de negociação, pois, para grande parte de nós, significa a diferença entre viver e morrer:

  • a fome de 33 milhões de pessoas; 
  • o genocídio da população negra com a letalidade juvenil, feminicídios, e outras violências; a liderança na lista de países que mais matam pessoas transexuais no mundo; as violências obscenas contra a população indígena; 
  • o racismo ambiental e seus impactos sobretudo em territórios com populações mais vulnerabilizadas, como é o caso dos grandes empreendimentos e da destruição dos modos de vida e territórios; 
  • os impedimentos de acesso e da vivência dos direitos sexuais e reprodutivos, entre outras. 

Que Carolina Maria de Jesus, de seu Quarto de Despejo tão atual, seja presença constante em nossas reflexões ao definirmos se entramos ou não nas frentes de lutas sociais em defesa dos direitos humanos, pois como ela “escreviveu”: “a tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”.

Por uma integração latino-americana participativa

Com Lula presidente o Brasil volta para o cenário global, especialmente para promover a integração latino-americana que, espera-se, seja inclusiva e participativa, possibilitando maior protagonismo da região nas relações de poder internacionais.

No primeiro dia do ano de 2023, Lula foi empossado Presidente do Brasil pela terceira vez, feito inédito na história do país. Uma multidão vermelha tomou conta da capital Brasília, milhares de pessoas foram assistir ao evento cantando e festejando. Havia apreensão no ar, pois dias antes bolsonaristas promoveram atos terroristas violentos, explodindo bombas e incendiando carros e ônibus. Mas nada impediu a alegria do povo, ansioso por dar as boas vindas a quem tinha contribuído para tirar o fascista do Palácio do Planalto.

No mesmo dia foi confirmado o ministério do Lula, 37 integrantes do primeiro escalão, entre nordestinos, mulheres, negros e indígena, composição muito mais diversa da que estávamos acostumados nos últimos anos, majoritariamente integrado por homens brancos. O número de pastas é também sinal de que a complexidade da
sociedade brasileira requer múltiplas interlocuções para a solução efetiva e criativa dos problemas econômicos, sociais, políticos, culturais e ambientais que a sociedade brasileira enfrenta.

VII Cúpula da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos

Foram anunciadas prioridades entre as quais o combate à fome e ao aquecimento global e a retomada da participação social desdenhada pela gestão Bolsonaro. Lula sinalizou ainda a importância que a integração latino-americana irá ocupar na sua agenda internacional. Com efeito, sua primeira viagem além-fronteiras é para participar
da VII Cúpula da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), realizada 23 e 24 de janeiro em Buenos Aires, sob a presidência pro-tempore da Argentina. Com essa participação, o Brasil passa a reintegrar a Celac, abandonada por Bolsonaro em 2019. A mudança de postura do governo do maior país da América do
Sul simboliza o retorno do Brasil à sua própria região.

Mecanismos de integração regional são relevantes, pois podem propiciar a conquista de espaços de autonomia e soberania para definição de políticas públicas e opções econômicas próprias. Isto é, uma integração que contribua para o desenvolvimento sustentável dos países e territórios bem como do exercício da soberania democrática dos povos.

Para que tal integração aconteça a participação social é necessária. Os poderes públicos dos Estados-membro precisam escutar as vozes e as demandas dos sujeitos de direito. As experiências brasileira e internacional têm demonstrado que a participação de organizações e movimentos sociais nas decisões dos governos traz muitos ganhos
como o aumento da legitimidade política, o aprimoramento da governança, o melhor desempenho das políticas públicas uma vez que há maior proximidade com as necessidades dos cidadãos e a possibilidade de mediar conflitos.

Os espaços de participação permitem a incorporação de uma pluralidade de atores sociais nos processos decisórios sobre as políticas, não se restringindo apenas aos grupos com influência sobre os tomadores de decisão, aumentando consequentemente a transparência e a prestação de contas. Ademais, a participação social contribui, e muito, para evitar custos elevados decorrentes de corrupção, de paralisações de obras e de processos judiciais de grandes projetos advindos de violações de direitos de povos e territórios impactados.

Espera-se que o presidente Lula não somente crie um Conselho Nacional de Política Externa – o Itamaraty é um dos poucos ministérios que ainda não conta com mecanismo institucional de participação social – como leve para os espaços existentes de integração regional a proposta de implementação de institucionalidades de interação entre Estado e Sociedade. Em relação à Celac, por exemplo, em 2021 mais de 40 organizações da sociedade civil da América Latina e do Caribe apresentaram aos governos da região proposta para a criação da Celac Social.

Há expectativa de inúmeros atores sociais da região de que o Brasil lidere um processo de espraiamento da participação da sociedade em assuntos de interesse público. O país tem experiência e reúne evidências de que trata-se de um mecanismo em que todas as partes ganham. A participação social é necessária para assegurar uma integração regional efetivamente cidadã.

COP 27 – Apesar do pouco avanço global, Brasil renasce em esperança

A 27ª edição da Conferência do Clima (COP 27), que aconteceu em Sharm El-Sheikh, Egito, terminou hoje, 18 de novembro. Sob o mote central da implementação, o evento teve o objetivo de chamar a atenção do planeta para a necessidade de avançar nos compromissos climáticos, além de ampliar a ambição dos países para conseguirmos atingir a meta de limitarmos o aumento da temperatura global em 1,5ºC até 2050. Ao longo das últimas duas semanas, observamos, por um lado, a disputa em torno da agenda de negociação da Conferência, e, por outro, uma ação entusiasmada da sociedade civil brasileira, que ocupou os pavilhões de atividades com a alegria de costume e ciceroneou a chegada do governo de transição. A presença do candidato eleito à Presidência do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, foi muito aguardada e concentrou as atenções na agenda da segunda semana de evento.

Do ponto de vista da negociação, o mote da “implementação” trouxe para o centro das discussões temas caros aos países em desenvolvimento: financiamento, adaptação e perdas e danos. A meta de 100 bilhões de dólares anuais para o financiamento de ações de mitigação climática, anunciada em 2009, durante a COP 15, realizada em Copenhague, nunca foi cumprida. Esses recursos, ofertados pelos países mais ricos, deveriam apoiar a implementação de medidas de combate às mudanças climáticas nos países no Sul Global, mas a meta nunca foi alcançada. Já a adaptação e as perdas e danos são duas agendas que buscam tanto evitar catástrofes climáticas antes que elas aconteçam quanto reparar os danos causados por eventos climáticos extremos ou de “desenvolvimento lento”, como o aumento do nível do mar, que provoca deslocamentos de pessoas e altera paisagens e dinâmicas ecossistêmicas.

O não cumprimento da meta de financiamento denota a falta de compromisso das maiores economias do mundo com o seu histórico de emissões e com os efeitos que decisões tomadas no passado têm para o presente e para o futuro do planeta. Da mesma forma, o atraso na discussão de temas tão importantes quanto adaptação e perdas e danos mostra as relações de poder que atravessam a negociação na sua dimensão de colonialidade que imprimiu o ritmo das discussões nos últimos já quase trinta anos de regime climático global.  Uma das declarações de Lula mais vocalizadas nas conversas de corredor foi que, se por um lado, a sua volta reposiciona o Brasil nas negociações de clima, por outro, ele irá cobrar o cumprimento da meta de financiamento para mitigação. O discurso de Lula também foi forte quando criticou a ordem mundial, reafirmando o multilateralismo e apontando para a necessidade de rever o funcionamento do Conselho de Segurança da ONU. Reforçou ainda a importância das relações Sul-Sul, tendo a aliança com o continente Africano e com a América Latina como centrais para a defesa intransigente da Amazônia. “O Brasil voltou”, disse o presidente eleito.

No relato a seguir, contamos um pouco sobre a atuação do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e como nos relacionamos com as principais pautas discutidas na COP 27. O Inesc teve uma participação muito ativa na Conferência, atuando em dois Side-Events (eventos paralelos) oficiais, em uma conferência de imprensa e em dois eventos do Brazil Climate Action Hub, além de articular, via grupo Carta de Belém, um  manifesto sobre mercado de carbono, assinada por diversas organizações da sociedade civil.

Financiamento climático global e questão indígena

Na mesa que debateu o  financiamento climático global, ocorrida no sábado 13/11, o Inesc questionou a contradição entre o reconhecimento dos povos indígenas e comunidades locais como vanguarda no enfrentamento da crise climática e a dificuldade para a chegada de recursos para a preservação de Terras Indígenas. Trata-se de uma lógica colonial que precisa ser quebrada para, de fato, avançarmos.

Apenas 1% do recurso da Ajuda Oficial para o Desenvolvimento Climático chegou aos povos indígenas de todo o mundo em dez anos (RNF, 2021) e, dentre o recurso já gasto do fundo prometido em Glasgow na COP 26 para os povos indígenas, apenas 7% chegou diretamente a eles.

Os povos indígenas são fruto e autores das florestas, possuindo ferramentas próprias para preservar seus territórios. Uma dessas ferramentas são os Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) de Terras Indígenas, nos quais as discussões comunitárias se articulam em propostas para o território. O Inesc elaborou uma metodologia de estimativas de custo de implementação de PGTA por acreditar que o financiamento climático deve reconhecer a autonomia e ser investido em projetos dos próprios povos indígenas.  Ainda que alinhada com a luta dos povos originários, essa aposta escapa de uma tendência majoritária na COP 27, focada em soluções e mecanismos de mercado.  Essa suposta inevitabilidade do mercado também é herança colonial, como se as soluções para a crise que este modelo de desenvolvimento criou só pudessem vir dele.

Mercados de carbono

Na segunda semana do evento, a sociedade civil brasileira lançou um manifesto contra os mercados de carbono. O objetivo da carta foi chamar a atenção mundial para os perigos da inclusão das florestas nos mecanismos de mercado para o financiamento climático, bem como para o lobby e a entrada em peso da iniciativa privada nos espaços de negociação. No documento, as organizações signatárias defendem que o financiamento climático internacional para florestas e para combater o desmatamento estejam “subordinados a políticas públicas estruturantes e fontes de financiamento no marco do orçamento público, da institucionalidade, da governança pública brasileira e da soberania nacional”. Além disso, reivindicam que “as doações internacionais relacionadas a estes resultados devem ser desvinculadas do teto de gastos do orçamento”.

As organizações que assinam o manifesto são: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib); Coordenação dos Povos Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab); Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq); Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag); Central Única dos Trabalhadores (CUT); Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental (FMCJS); Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (FBOMS); Grupo Carta de Belém (GCB); Memorial Chico Mendes; Movimento do Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase); Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc); Instituto de Referência Negra Peregum; Terra de Direitos; Uneafro Brasil; Movimento de Mulheres Camponesas; Marcha Mundial das Mulheres. Clique aqui para ler a carta

Por uma transição energética justa e livre do gás natural

O Inesc também participou do lançamento da Coalizão Energia Limpa – transição justa e livre do gás, em que organizações da sociedade civil, articulam-se coletivamente diante do desmonte e retrocesso vivido pelo setor energético brasileiro nos últimos anos. Isso pôde ser visto na privatização da Eletrobrás, na falta de planejamento do setor elétrico que resultou na crise hídrica dos reservatórios das hidrelétricas, na criação de programa que defende a manutenção do carvão mineral para geração de energia, no aumento tarifário nas contas de energia, além do aumento das importações de gás natural liquefeito, representado na expansão de combustíveis fósseis, sobretudo do gás natural, que se estruturaram diante de incentivos fiscais e subsídios por parte do governo federal.

A Coalizão Energia Limpa defende que o gás natural não deve fazer parte de uma transição energética e deve ser banido da nossa matriz até 2050, dado o grande potencial de energia renovável que o Brasil possui e que pode ser explorado de maneira ambientalmente sustentável e socialmente justa, garantindo a seguridade do sistema.

O lançamento da Coalizão convergiu com as falas do Presidente Lula, em seus discursos nesta COP. Ele deixou claro que enxerga o potencial energético renovável brasileiro, além de garantir que não vai permitir exploração de gás natural em Terras Indígenas. Logo, saímos com a expectativa de que o Brasil poderá avançar rumo à uma transição energética com justiça social.

Transição energética justa requer NDCs transparentes e redução dos subsídios aos combustíveis fósseis

A internalização do Acordo de Paris na esfera nacional se dá por meio das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs na sigla em inglês). São nelas que aparecem os planos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, assim como as metas de redução de emissões. Diferente dos acordos climáticos do passado, todos os países a partir de Paris precisam ter suas NDCs, que são o principal instrumento pelo qual conseguimos acompanhar a ambição e os esforços de cada país rumo à meta de limitar o aumento em 1,5ºC da temperatura terrestre.

Participamos de um Side-Event que reuniu análises de seis países sobre suas NDCs: Brasil, Colômbia, Israel, Suiça, Burkina Faso e Georgia. O principal resultado é o de que ainda estamos longe de termos NDCs que são transparentes, comparáveis entre si e que contam com a participação da sociedade civil. As conversas nessa COP 27 nos deram alguma esperança de uniformização de informações a partir do Enhanced Transparency Framework (ETF), mas resultados concretos só estão sendo prometidos para 2024. Infelizmente ainda falta muito para garantir que a sociedade faça parte da construção e implementação das NDCs pelo mundo.

Lançamos nesta COP 27 a quinta edição do nosso estudo sobre subsídios aos combustíveis fósseis, que calculou quase R$ 120 bilhões em gastos diretos e indiretos fornecidos pelo governo para consumidores e produtores de petróleo, gás e carvão. O lançamento se deu em mais um Side-Event oficial da Conferência, onde foram compartilhadas experiências de subsídios aos fósseis em seis países: Brasil, Argentina, Canadá, África do Sul, Índia e Indonésia.

Apesar das diferenças enormes entre os países, as similaridades são impressionantes. Todos ainda possuem fortes estruturas de subsídios aos combustíveis fósseis, ainda que a maioria não possua estimativas oficiais desses incentivos. Ademais, a maioria também está enfrentando a expansão do gás, que está sendo vendido globalmente como uma energia que favorece a transição energética, apesar de ainda ser muito danosa às pessoas e ao meio ambiente.

Além disso, a maioria dos países aumentou os subsídios ao consumo de fósseis nos últimos anos, como resposta ao aumento dos preços internacionais de energia. A mensagem de todas as ativistas do evento foi a mesma: esses subsídios devem ser focalizados nos mais vulneráveis e limitados no tempo. A resposta de longo prazo é reduzir a dependência dos fósseis por meio de uma transição energética com justiça social.

Apesar da urgência de abandonarmos os combustíveis fósseis, os Estados, influenciados pelo forte lobby do setor fóssil presente na COP, ainda não conseguiram se comprometer com o fim da energia suja. A ONU publicou um primeiro rascunho dia 17 de novembro do que poderá ser o acordo final dessa Cúpula, e repete a meta de Glasgow de “acelerar as medidas para a redução gradual da energia a carvão e eliminar gradualmente e racionalizar subsídios aos combustíveis fósseis”. Neste ritmo, estaremos muito longe de cumprir o Acordo de Paris e combater a crise climática.

Discurso do Lula

Apesar de ainda não ter assumido a presidência, Lula fez na COP 27 um discurso de chefe de Estado. Sua participação anunciou a volta do Brasil para as discussões climáticas internacionais, adotando uma postura de cobrança para que os acordos sejam verdadeiramente cumpridos, assim como o retorno do diálogo entre sociedade civil e governo brasileiro. Em meio a tanta saudade de um país minimamente funcional, Lula e sua delegação foram recebidos como pop star no evento.

Diante da hegemonia do mercado, do agronegócio e do setor privado no debate do clima, Lula deu centralidade ao combate à fome e aos crimes ambientais, se comprometendo a zerar o desmatamento em todos os biomas do Brasil até 2030. Reafirmou mais uma vez a criação Ministério dos Povos Originários como medida fundamental, mas também, de novo, deixou de fora o compromisso direto em acabar com o passivo da demarcação de terras no país. Declarou ser urgente repensar a forma como o multilateralismo funciona, dizendo ainda que irá batalhar pela reforma da ONU.  Ressaltou a responsabilidade e a necessidade do cumprimento das promessas de financiamento por parte dos países desenvolvidos: “Eu voltei e vou cobrar”.

Tom parecido se repetiu na reunião organizada com a sociedade civil. Nela, Lula ouviu integrantes de diversos movimentos e setores e afirmou que, a partir da próxima COP, o Brasil voltará a ter apenas uma delegação, prometendo assim escuta e participação dos movimentos nos espaços oficiais. Reafirmou os compromissos feitos no discurso e na campanha e garantiu a realização de conferências temáticas ao longo de seu governo.

É com um sentimento de esperança que a sociedade civil organizada sai desta COP. Após quatro anos de negacionismo climático e de isolamento da sociedade por parte do governo, a abertura do diálogo mostra que podemos ter um novo caminho para trilhar. Há riscos, no entanto, nessa ‘lua-de-mel’ entre sociedade civil e governo. Com parâmetros tão baixos como os que tivemos ao longo da gestão Bolsonaro, é fácil nos encantarmos com os discursos sensatos e bonitos de Lula. A emergência climática, no entanto, requer medidas concretas e urgentes. Assim, temos ainda a tarefa de pressionar para que haja o detalhamento das propostas, tendo a sociedade civil, os movimentos sociais, os povos originários e comunidades tradicionais com partícipes integrais da construção de um novo Brasil.

Poucas decisões concretas

As decisões das negociações ainda não saíram oficialmente, mas já sabemos que pouco se avançará de fato na implementação dos acordos, especialmente no que tange ao financiamento das medidas por parte do Norte global. Se as narrativas pró-mercado parecem ter ganhado ainda mais força, a concretização do financiamento para perdas e danos e adaptação parece estagnada. Fica ainda mais explícito que, caso os acordos feitos em fóruns internacionais como a COP não sejam efetivamente vinculantes, seguiremos caminhando rumo ao abismo.

 

Equipe do Inesc na COP 27, no Egito

Cássio Cardoso Carvalho
Iara Pietricovsky
Leila Saraiva
Livi Gerbase
Tatiana Oliveira

COP: 27 vezes frustrados. Esperança vem da sociedade civil organizada

Terminada a primeira semana da 27ª Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), o sentimento é o de reafirmação das nossas frustrações e desesperanças com o processo que se iniciou há mais de trinta anos na Rio+92. Mais uma vez, os países ricos não querem admitir sua responsabilidade histórica na crise climática em que vivemos e esperam que os países em desenvolvimento paguem a conta. Se utilizando de uma estratégia de voltar a debates já superados, reabrindo constantemente temas na agenda acordada, os países do Norte Global bloqueiam qualquer possibilidade de uma resposta rápida e eficaz à crise climática.

Esta COP 27, sediada no Egito, foi definida como a da implementação, o que significa entender como vamos operacionalizar as regras do Acordo de Paris – firmado há sete anos – e garantir os meios de implementá-lo. Os três pontos fundamentais da negociação são: 1) o tema do financiamento, que desde o início vem sendo postergado e não avança além de uma promessa inicial da Conferência de garantir U$ 100 bilhões por ano para o Fundo Verde pelo Clima; 2) políticas de adaptação, que são aquelas necessárias para o enfrentamento das consequências já existentes das mudanças climáticas; e 3) Perdas e Danos, demanda de reparação negociada na COP 26, em Glasgow, pelos países que já estão em situação de vulnerabilidade extrema. Infelizmente, esses temas dependem de vontade política para serem postos em prática, o que até o momento não existe.

De quem é a conta? 

Os países ricos fogem à responsabilidade, não reconhecendo o princípio das Responsabilidades Comuns Porém Diferenciadas (CBDR, sigla em inglês), que se refere às responsabilidades históricas dos países que criaram o atual modelo econômico predatório e dele se beneficiaram. Este princípio garante a justa e histórica compensação de um modelo imposto e promotor da crise climática que vivemos no planeta. A primeira semana de negociações da COP não trouxe nenhuma novidade: os países ricos ainda não querem pagar a conta. Os movimentos sociais e jovens seguem aqui na COP 27 em protesto constante, pois não há mais tempo a ser perdido.

O governo brasileiro na COP 27

Já o Brasil na COP 27 é o retrato do negacionismo climático que sintetiza os últimos quatro anos de governo Bolsonaro. Isso fica materializado no estande oficial do governo brasileiro, esvaziado, e mostrando a falta de protagonismo diante das pautas climáticas e energéticas que preponderam dentro da Convenção, papel esse que o Brasil já desempenhou.

A esperança está na sociedade civil

 No entanto, a sociedade civil organizada apresenta em outro espaço, o Brazil Climate Action Hub, no qual debates e propostas abrangem temas como racismo ambiental e energético, retomada das políticas de fiscalização das florestas, consequências da expansão das fontes fósseis de energia, entre outros, de maneira a evidenciar um contraponto ao negacionismo e ao papel retrógrado que o Brasil se colocou nos últimos anos. Há, porém, uma grande expectativa de que o novo governo Lula retome uma política ambiental eficiente e que assuma compromissos que construam e solidifiquem as políticas de adaptação brasileiras e de transição energética com justiça social.

Agenda Inesc na primeira semana da COP 27 


Acordos comerciais 

Embora fora da agenda climática oficial, a liberalização comercial tangencia a questão das mudanças climáticas, na medida em que se comporta como um vetor para a retração de direitos socioeconômicos e ambientais. Em negociação há vinte anos, as discussões sobre o acordo entre Mercosul e União Europeia têm introduzido no debate público nacional e internacional preocupações relativas aos efeitos econômicos, sociais e ecológicos.

No dia 10/11, o Brazil Climate Hub acolheu discussão proposta por um conjunto de organizações que vêm tratando do tema: Frente Brasileira Contra Acordos Comerciais, Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), Fase, Inesc, ISPN, IPAM, WWF, Rede Cerrado e Instituto Cerrado. O objetivo do painel foi discutir o impacto climático das cadeias globais de valor relacionadas ao agronegócio nacional, com olhar específico para as transformações do uso da terra no Cerrado. Considerando as relações complexas entre a produção de commodities, a exportação desses gêneros e as suas consequências negativas para povos e territórios, o debate abordou ainda os desafios que persistem na negociação do Acordo, a falta de transparência nas negociações e os desafios para o próximo governo eleito.

A sociedade civil brasileira tem se posicionado historicamente de maneira contrária aos tratados de livre comércio, porque entende que esse tipo de acordo reproduz estruturas de desigualdade nas relações entre os países e estabelece um regime de trocas ecológicas desiguais, incentivando o extrativismo predatório e a violação de direitos humanos.

Pauta indígena

A luta dos povos originários do Brasil está muito bem representada pela robusta e diversa delegação indígena, contando com lideranças de todos os biomas. A bancada do cocar se fez presente, com as deputadas eleitas Sônia Guajajara e Célia Xakriabá, e a atual parlamentar Joênia Wapixana. Entre as várias discussões que envolveram os povos indígenas como atores fundamentais para o enfrentamento das mudanças climáticas, vale destacarmos a sessão ocorrida no dia 10/11 no Brasil Hub: “A Justiça Climática e os tribunais: A proteção dos Direitos Humanos no Contexto da Crise Climática”.  Participaram da sessão César Rodriguez-Guaravito (Climate Littigation Accelerator), Sophie Marjanac (Earth Grey Liston), Gerry Liston (Glan), Sônia Guajajara e o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso.  

O ministro Barroso ressaltou a importância dos acordos climáticos como garantidores de direitos fundamentais e, portanto, passíveis de ações de litigância. A partir da sua experiência como relator da ADPF 708, na qual o Supremo decidiu por proibir o contingenciamento do Fundo Clima, Barroso destacou que, ainda que as metas do Acordo de Paris não sejam vinculantes, Estados nacionais que deliberadamente assumem uma política oposta a ele podem e devem ser acionados judicialmente. Este é um precedente importante não apenas para garantir que financiamentos como o Fundo Clima sejam executados, mas também contra a captura que vivemos nos últimos anos em órgãos importantes para a proteção ambiental, a exemplo do Ibama e da Funai.

A solução da crise climática está na ação nacional. Precisamos atuar e pressionar os nossos governos para que os acordos, as legislações se concretizem na realidade local. E não o inverso. Por mais que as negociações não se movimentem, existe agora no Egito um encontro gigantesco da sociedade civil de todas as partes do mundo. 

Equipe do Inesc na COP27, no Egito
Cássio Cardoso Carvalho
Iara Pietricovsky
Leila Saraiva
Livi Gerbase
Tatiana Oliveira

Renovação na política: o que diz a distribuição dos recursos?

Mais mulheres no poder, mais pessoas negras, indígenas, LGBTQIAP+ ocupando a política! Seja nos partidos do espectro da direita, do centro ou da esquerda, todos têm se utilizado de algumas ou todas essas e outras bandeiras sociais que reivindicam maior pluralidade e diversidade na política brasileira. Cotas de candidaturas de mulheres e porcentagem de recursos, também para pessoas autodeclaradas negras com prazo definido para repasse do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), são algumas das normativas criadas para que os partidos não só respeitem as regras de distribuição equitativa do Fundo, mas demonstrem vontade política nessa distribuição. Assim como em 2018, faltando tão poucos dias para a decisão das eleições de 2022, tanto candidaturas femininas quando de pessoas negras denunciam que os repasses não foram integralmente repassados pelos partidos. Assistiremos a mais uma anistia?

A distribuição dos recursos públicos dos partidos, bem como as doações, que poderíamos destacar como apoio da sociedade civil, uma vez que só podem ser feitas por pessoas físicas, traduzem essa “vontade política” por mais diversidade e representatividade no poder? Renovação no poder poderia ser definida pela entrada e permanência de pessoas que, historicamente, não atuavam na política institucional até os últimos anos? O que seria elemento fundamental para que a pluralidade das candidaturas refletisse a pluralidade de pessoas efetivamente eleitas e eleitos? Podemos concordar que recurso financeiro é um investimento político importante para que essa realidade se materialize?

Vamos aos recursos!

Há 5 dias das eleições, das 29.555 candidaturas registradas, 7.067, ou 24%, não declararam recebimento de nenhum recurso financeiro público (FEFC) para suas campanhas. No que se refere às doações às campanhas, dos quase de R$ 680 milhões doados por pessoas físicas, apenas 13% ou aproximadamente R$ 89 milhões foram destinados a candidaturas de mulheres, e 4% ou pouco mais de R$ 26 milhões foram destinados a candidaturas pretas. Esse dado só reforça a importância da existência de um fundo público que busque garantir a distribuição mais equitativa dos recursos, também construindo regramentos que incidam no repasse feito pelos partidos políticos.

Alguns números nos ajudam a debater sobre a distância entre o discurso da renovação e a distribuição de recursos financeiros. De acordo com o levantamento da Plataforma 72horas, até 27 de setembro de 2022, enquanto 10.612 candidaturas que pleiteiam a cadeira de deputada(o) estadual declararam o recebimento de pouco mais de R$1 bilhão, as 10.648 candidaturas que disputam as 513 cadeiras da Câmara Federal declararam aproximadamente R$2,5 bilhões.

Considerando então o investimento maior dos partidos nas candidaturas a deputado(a) federal, como a divisão dos recursos vem sendo realizada e como podemos utilizá-la como lente para pensarmos sobre renovação ou manutenção de espaços do poder institucional?

Ainda de acordo com a Plataforma 72 horas, das 10. 628 candidaturas que estão na disputa pela Câmara Federal, 448 disputam a reeleição pelas 513 cadeiras. Ou seja, 4,2% do total de candidaturas são para reeleição, e correspondem a 87,3% das cadeiras. Quando analisamos a distribuição de recursos, as candidaturas a reeleição declararam até o momento o recebimento de R$747.417.252, sendo 61 candidatas e 367 candidatos, que somados às 2 candidatas e 18 candidatos que não declararam recebimento do Fundo Especial, totalizam 448 candidaturas. Numa conta simples, que sabemos não ser assim, significa dizer que cada candidata e candidato à reeleição para a Câmara Federal recebeu em média, até o momento e subtraídas as 20 candidaturas que declararam não terem recebido nada, R$1,7milhão.

Já às candidaturas que não concorrem à reeleição, que totalizam 7.207 dividem o recurso de R$ 1,7 bilhão, o que significaria, também utilizando a divisão igualitária, caso o fosse, uma média de R$ 239 mil.

Consideremos então as candidaturas à reeleição. Antes, é importante destacar que a lente a ser utilizada nesta leitura não pode ser a da igualdade, pois como bem sabemos, a desigualdade estrutural da sociedade brasileira nos convoca a agir de maneira equitativa, quando consideramos a correlação desigual de forças que resultam na permanente ocupação dos lugares sociais e políticos de poder por uma

parcela masculina, branca e cisheteronormativa da sociedade. Sendo assim, quando nos referimos à reeleição, é preciso destacar que a recente história de ocupação de mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTQIAP+ na política institucional não pode, nem de longe, ser considerada “manutenção de poder”, visto que são grupos recém-chegados nesses espaços.

Dito isso, vamos verificar o que os dados nos dizem. Das candidaturas à reeleição, no que se refere à raça/cor, 312 das 428, ou 72,89% das pessoas que receberam recursos, são brancas, 114, ou 26,63%, são  pessoas negras, 01 ou 0,23%, é indígena e 01 ou 0,23% é amarela. No que se refere ao gênero, são 367 homens, ou 86%, e 67 mulheres, ou 14%.

Infelizmente, a luta por maior representatividade na política, ainda se restringe às cotas das candidaturas e não efetivamente ocupação de cadeiras, o que seria um passo fundamental para começarmos a falar de um impacto real rumo a equidade e reparação histórica da sociedade brasileira com os povos originários, com a população negra e com as mulheres no Brasil.

O escandaloso racismo institucional nas Eleições de 2022

“O escandaloso racismo institucional nas Eleições de 2022” foi um texto publicado originalmente no dia 21 de setembro, no Le Monde Diplomatique.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou que, nas Eleições de 2022, os partidos seriam obrigados a repassar, até o dia 13 de setembro, 100% do recurso da cota de gênero e raça/cor às candidaturas de mulheres e pessoas negras, o que corresponde a 30% do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). A determinação do TSE ocorreu porque nas Eleições de 2020, o atraso no repasse prejudicou as candidaturas desses grupos sociais.

A regra determina que a prestação de contas parcial deve ser feita ao Sistema de Prestação de Contas Eleitorais (SPCE) em até 72 horas a partir do recebimento do recurso[1]. Considerando o prazo, o cenário ficou da seguinte forma: foi repassado um montante de R$ 4,7 bilhões a todas as candidaturas, sendo R$ 4 bilhões do FEFC, R$ 236,9 milhões do Fundo Partidário e R$ 448,3 milhões de doações. Dos R$ 4 bilhões do FEFC, 30,6% foi repassado a mulheres e 69,4% para homens, e em relação ao recorte racial, o repasse foi de 36% para negros/as (pretos/as + pardos/as) e 62,7% para brancos/as. A determinação do TSE foi, portanto, cumprida.

No entanto, as desigualdades na distribuição dos recursos de campanha ainda são gritantes, revelando o persistente racismo institucional partidário, conforme pudemos checar na Plataforma 72Horas. Avaliando todas as fontes de recursos, as mulheres brancas, pardas e amarelas ficam muito atrás dos homens dentro do seu grupo racial. Às mulheres brancas foi destinado 35,6% do valor recebido por homens da mesma cor, ou seja, enquanto eles foram beneficiados com R$ 2,2 bilhões, elas ficaram com R$ 800,6 milhões. As mulheres pardas receberam R$ 384,3 milhões (52% a menos do que as mulheres brancas) e os homens pardos R$ 866,5 milhões (61,5% a menos que os homens brancos).

Nas candidaturas indígenas, onde há proporção mais equânime de número de candidaturas (94 homens e 77 mulheres), a distribuição do recurso foi mais equitativa: dos R$ 28,7 milhões distribuídos para 133 candidaturas, as mulheres ficaram com R$ 12,9 milhões e os homens com R$ 16,5 milhões. Atenção ao fato de que não foi destinado nenhum recurso para 38 candidaturas indígenas. Faltando duas semanas para o 1º turno das eleições, tal ocorrência pode indicar uma escolha dos partidos em não viabilizar indígenas, de fato, no pleito. No grupo de autodeclarados pretos e pretas, que na distribuição de candidaturas ficou em 55,7% e 44,3% respectivamente, a distribuição do recurso também se deu, até o momento, com maior equidade: a mulheres pretas foram destinados R$ 190,7 milhões (1.361 candidatas) e aos homens pretos R$ 202,7 milhões (1.529 candidatos). Considerando o grupo de candidaturas pretas, 616 homens e 316 mulheres não receberam recurso algum.

Homens brancos receberam 10 vezes mais do que homens pretos

Comparando os homens brancos com os homens pretos, a diferença é enorme. Os primeiros acessaram mais de R$ 2,2 bilhões e os segundos apenas 9% disso, ou R$ 202,7 milhões. Já entre as mulheres, as brancas somaram R$ 880,6 milhões, enquanto as pretas, apenas, R$ 190,7 milhões. Nas candidaturas, para cada preto, existem 4,2 candidatos brancos. Mas, para cada R$ 1,00 do candidato preto, o branco recebe R$ 10,00.

Entre os presidenciáveis, que totalizam 11 candidaturas, os únicos dois que se declaram pretos – Leonardo Péricles (UP) e Vera Lúcia Salgado (PSTU) –, receberam, apenas, R$ 1,2 milhão e R$ 825 mil, respectivamente. Os valores representam 1% do recurso alocado em campanhas presidenciais, que somam R$ 207,6 milhões. Lula, Ciro e Tebet foram beneficiados com R$ 89,8 milhões, R$ 26 milhões e R$ 36,7 milhões, respectivamente. Jair Bolsonaro, publicamente avesso ao fundo público – ainda que esteja enfrentando denúncias de uso de recursos públicos de forma ilegal para sua campanha–, recebeu R$ 25,7 milhões, sendo R$ 846 mil reais do FFEC, R$ 13 milhões do Fundo Partidário e R$ 11 milhões de doações. Os brancos representam 63,6% das candidaturas ao cargo.

Espectro político

Em consideração ao espectro político, o centro (MDB, Solidariedade, PSDB, Avante e PROS) repassou R$ 832,7 milhões para 3.711 candidaturas, sendo R$ 282,6 milhões para 1.304 mulheres e R$ 550 milhões para 2.407 homens, sendo a coligação mais equânime com 35% de candidatas e 34% dos recursos a elas distribuídos. O grupo de partidos formado pela esquerda se saiu bem na cota de candidatas, com 37% de mulheres. Todavia, distribuiu somente 28% do recurso para elas. Dos R$ 1,2 bilhão para 5.898 candidaturas, foram R$ 349,9 milhões para 2.171 mulheres e R$ 877,3 milhões para 3.727 homens (PSOL, PCdoB, PSTU, PT, PCO, PCB, PDT, PSB, UP, PMN, Cidadania, Rede e PV). A direita também apresenta uma injusta distribuição, uma vez que as mulheres receberam somente 27% dos recursos quando são um terço das candidatas. Entre os partidos de direita, dos R$ 1,9 bilhão repassados a 9.197 candidaturas, R$ 531,7 milhões foram repassados a 3.003 mulheres candidatas e R$ 1,4 bilhão para 6.094 homens (PL, União, DEM, PSL, DC, PMB, PRTB, Novo, PP, AGIR, PTB, Podemos, PSC e Patriotas).

Candidaturas a governo do estado também distribuíram mal

Um dos piores dados do processo das Eleições de 2022 foi o de que oito estados, dos 27 da Federação, não lançaram candidatas mulheres para o cargo de governadora. São eles: Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Rondônia e Santa Catarina. De um total de 206 candidaturas a governador, 83,5% são de homens e 16,3% de mulheres. Os candidatos homens, que somam 170 pessoas, receberam R$ 484,8 milhões, e as 36 candidatas a governadora receberam, juntas, R$ 51,3 milhões. Para as pessoas brancas que pleiteiam esse cargo, o repasse foi de R$ 385,7 milhões, enquanto que para os pardos foi de R$ 130,3 milhões. Já para os pretos, foi de apenas R$ 15,3 milhões. Os dois candidatos que se declararam indígenas receberam R$ 4,6 milhões. Não há candidaturas de autodeclarados amarelos

[1] Acesso 16 de setembro, 12:00, fonte: Plataforma 72 horas. Isso porque (1) os partidos tiveram 72 horas para prestar contas do que gastaram até dia 13/09, e (2) ao mesmo tempo, podem ter prestado contas de gastos dos dias 14 e 15/09.

Trabalho infantil e orçamento público: investimento na manutenção das desigualdades

 

E duas crianças se encontraram
Uma dentro, outra fora do carro importado
Que estava ali sorridente
Havia passeado num natal abençoado com pai, mãe, parentes
No banco traseiro, vários presentes, diversas cores, fitas reluzentes
No encosto do banco tem até um vídeo game
Hipnotizada não desviava o olhar a frente
Mal notou a outra criança
Parada na janela, que ao ver a cena ficou alerta
Nunca tinha visto uma tela
Tão pequena, suspirou um encanto de uma forma tão serena
E duas crianças se encontraram, uma dentro e outra fora de um carro importado
O local? Precisamente um semáforo. Tão vermelho como o rosto do João queimado
João olhava no carro como se fosse um espelho
Equilibrava balinhas, chicletes e um pouco de dinheiro
Nos poucos segundos da cena João sonhou com o vídeo game que nunca jogou
Se perguntou: se eu fosse ele e se ele fosse eu?
E o mesmo respondeu: Seria tão bom experimentar o Danone
Sem o gosto azedo do aterro desde ontem
Fome? Eu acho que ele não tem, problemas? Eu acho que ele não tem
Um pai? Com certeza ele tem, mas ‘peraí’ pensando bem
Tanto eletrônico pra esse menino brincar, ninguém olha pra ele, ambos no celular
Ele me viu, chamou o pai tocando no ombro
O pai respondeu gritando, quase tive um assombro
O pai dele parece irmão com o meu que nessa manhã mesmo me bateu
Pois acordei tarde pra trabalhar, queria um pai que brigasse comigo pra eu estudar
E duas crianças se encontraram, uma dentro e outra fora de um carro importado
E mesmo com o fumê se enxergaram, por alguns segundos se olharam (…)
O que ele faz com doce, balinha? Abordando os carros num calor de meio dia?
Não está com uniforme de escolinha
Qual será a melhor vida a dele ou a minha?
São apenas crianças, são apenas crianças
Querem pais de verdade, mães de verdade, família de verdade. Querem infância!
E duas crianças se encontraram, uma dentro e outra fora de um carro
Por alguns segundos se olharam e um pequeno sorriso trocaram
Até o sinal abrir, uma seguir, outra ficar
Uma para possivelmente se “divertir” e a outra pra trabalhar, pra trabalhar (…)

Música Duas Crianças, de Markão Aborígine

 

 

A música e a arte são poderosos instrumentos de denúncia das violências que acometem nossa sociedade. O rapper e compositor Markão Aborígine em sua música ‘Duas Crianças’ revela de forma sensível e inteligível as desigualdades existentes que impactam diretamente as infâncias no nosso país. O trabalho infantil é um dos termômetros mais infalíveis para medir o nível de desenvolvimento social, político, cultural e econômico de uma nação. Quanto maior a desigualdade ou o empobrecimento do país, maior a taxa de trabalho infantil, que pode ser determinada também por uma incapacidade institucional de promoção de políticas de proteção social ou mesmo por uma escolha política de geração de riqueza concentrada num grupo pequeno da população, como tem acontecido no Brasil.

O aumento de crianças e adolescentes vendendo balinhas no semáforo, como ilustrado na música, não se deu somente pela catástrofe que foi e está sendo a pandemia da Covid-19 no mundo, mas sim pela gestão do país que decidiu por não investir em políticas sociais antes e no período desta crise mundial. O que reverberou no agravamento da pobreza e da fome, em fragilidades educacionais pela necessidade do isolamento social, na elevação do desemprego e de informalidade e, consequentemente, no aumento do trabalho infantil. Mesmo sem termos pesquisas recentes, é possível perceber no nosso dia-a-dia o número crescente de meninos e meninas nas mais diversas situações de trabalho, muitas delas de alta periculosidade.

O trabalho infantil no Brasil acontece desde os anos 1500, como menciona Elisiane Santos: “A história da infância pobre é uma história de trabalho. O Brasil, desde a colonização, utilizou a mão de obra infantil”[1]. E isso caracteriza o perfil das crianças e adolescentes nesse contexto hoje, onde 66,1% são negras, de acordo com o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI). O ciclo de empobrecimento e entrada no mundo de trabalho precarizado e de forma precoce é engendrado pelo racismo estrutural do Brasil, país marcado pela escravização e pela falta de políticas públicas de emprego, renda, acesso à terra e educação de qualidade após a dita abolição da escravidão.

Alguns anos antes da Lei Aurea, foi sancionada a Lei do Ventre Livre, que dava “liberdade” às crianças nascidas a partir daquela data. Contudo, quando completados os 8 anos, elas deveriam prestar serviços aos senhores de suas mães até os 21 anos, caso contrário ficariam a cargo do Estado e este pagaria uma indenização ao senhor de engenho. Essas indenizações estão vigentes até hoje, mas em outra roupagem. Quando o Estado abre mão de proteger suas crianças do trabalho infantil, ele está dando permissão à exploração dessa população, em que 337 mil estão na faixa etária de cinco a 13 anos. Isso beneficia e gera riqueza para grupos específicos. E as consequências para quem o vivencia é a manutenção do ciclo de pobreza, de pouca ou nenhuma escolarização, de acesso precário ao emprego e não ascensão social que se perpetua entre as gerações de diversas famílias brasileiras.

Explorar o trabalho infantil é um projeto de governo

A análise do orçamento público voltado para o enfrentamento do trabalho infantil mostra o quão importante é a atuação do Estado nesta área. Entre os anos de 2016 e 2019, quando o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil ainda recebia recursos federais mais volumosos, foi possível diminuir em 0,6 pontos percentuais a quantidade de meninas e meninos na situação de trabalho. O que significa uma diferença de 335 mil crianças e adolescentes. Ainda assim, não foi um número significativo considerando o tamanho do problema: 1,8 milhão de crianças e adolescentes em trabalho infantil em 2019. Portanto, ainda há grande necessidade de atuação do Estado e da sociedade para eliminar a sistemática violação desse direito.

No entanto, o descaso no governo federal é generalizado. Se o Brasil não agir com celeridade e efetividade nas políticas de proteção social para crianças, adolescentes e suas famílias, a meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU: “acabar com todas as formas de trabalho infantil até 2025” não será alcançada. Como pode ser observado na Tabela 1, os recursos para o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), de responsabilidade do Ministério da Cidadania, foram zerados no governo Bolsonaro.

Tabela 1[2]

Os recursos federais disponíveis para o programa, que até 2020 estavam dispostos numa rubrica intitulada Ações Estratégicas para Enfrentamento ao Trabalho Infantil, e em 2021 e 2022, como Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, diminuíram 94,4% (em termos reais) em 2019 na comparação com 2015, início da gestão anterior. E no que tange à execução financeira, a diferença nesse mesmo período foi de 84,1%, o que significa uma perda de R$ 27,8 milhões. Mas se compararmos com 2016, início da vigência do Plano Plurianual (PPA) do período, essa diferença sobe para 94,7%, uma perda de R$ 108 milhões.

A situação nos anos seguintes é ainda mais catastrófica. Recursos autorizados em 2021 em míseros valores não foram executados, e em 2022, apesar do valor disponível de R$ 9,4 milhões, até maio não havia um centavo gasto, nem ao menos empenhado. Esse contexto se relaciona com a extinção da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti) em 2019. Apesar de ter sido reinstituída em 2020, enfrenta sérias limitações de participação de organizações historicamente comprometidas com a erradicação do trabalho infantil no Brasil, como é o caso do FNPETI, Conanda e Ministério Público do Trabalho. Sem participação social e sem recursos, a consequência é a não realização das ações e metas do III Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil que finaliza em 2022.

O PETI não deixou de existir e integra a política de assistência social, que também vem sendo desmontada pelos últimos governos, principalmente a partir da aprovação da Emenda Constitucional 95 que impõe um teto de gastos para as despesas com políticas públicas. Os munícipios não têm condições de financiar a política de assistência sozinhos, portanto, os repasses do governo federal são essenciais para o fortalecimento do atendimento às comunidades. A capital do Brasil, por exemplo, tem demonstrado, vergonhosamente, o que significa esse sucateamento da assistência, com pessoas dormindo em filas em frente aos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) para conseguir uma vaga de atendimento com o objetivo de atualização de seus dados no Cadastro Único para recebimento de benefícios.

Ainda sobre o orçamento do governo federal é importante mencionar que entre 2013 e 2017 havia uma rubrica intitulada Fiscalização para Erradicação do Trabalho Infantil com recursos da ordem de R$ 4 a R$ 6 milhões de responsabilidade do Ministério do Trabalho. Tal rubrica deixou de existir em 2018. E no âmbito do judiciário, há um programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem criado em 2013, porém configurado com esse nome a partir de 2016 a cargo do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Tem como meta principal a sensibilização e mobilização da sociedade, dos profissionais que atuam com crianças e adolescentes e das mídias para a importância da prevenção e do enfrentamento do trabalho infantil por meio de campanhas, pesquisas, seminários e processos formativos no tema.

Tabela 2

Os recursos deste programa são distribuídos entre os tribunais regionais do trabalho mediante apresentação de planos de ação. A Tabela 2 mostra uma queda nos valores disponíveis para 2020, mas retomando em 2021 o patamar de 2019 em termos de recursos autorizados. No entanto, a execução financeira em 2021 foi muito baixa: apenas 24% do valor autorizado.

 

A “vontade” política precisa ser pautada pela promoção e proteção dos direitos

“Meu sonho é poder trabalhar, trabalhar para comprar comida, comer bem” (Menina, 11 anos, Itapoã-DF, maio de 2022)[3]

A crueldade de um país que violenta crianças e adolescentes por meio da fome, da pobreza e das desigualdades (porque todas essas condições são construídas) é retirar deles e delas a possibilidade de sonhar. As necessidades básicas não devem ser sonhos, porque são direitos e por isso devem ser cumpridos pelos responsáveis por sua efetivação.

O enfrentamento do trabalho infantil ancora-se no entendimento de que 1) o trabalho na infância é degradante e prejudica o desenvolvimento integral; 2) toda criança e adolescente, independentemente de classe, raça, cor, etnia ou território, é sujeito de direitos e deve acessá-los de modo a poder ampliar sua capacidade de sonhar. E para isso, os governos precisam investir, urgentemente, em políticas de proteção social e de educação de qualidade. O país convive atualmente com 33,1 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional grave por conta de decisão política. É preciso que nos mobilizemos nesse momento e que votemos nas próximas eleições em candidaturas que proponham mudar essa realidade e que tenham como prioridade os direitos das crianças e dos adolescentes em sua agenda.

Recomendações

– Revogação da Emenda Constitucional 95;

– Maior orçamento e execução do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil com transferência de renda para famílias com crianças e adolescentes e avaliações periódicas do programa;

– Ampliação do número de beneficiários e dos valores do programa de transferência de renda do governo federal (Auxílio Brasil ou Bolsa Família);

– Ampliação da Aprendizagem Profissional aumentando o piso para cotas de contratação de aprendizes;

– Cumprimento da meta 20 do Plano Nacional de Educação: atingir até 2024 10% do PIB em investimento em educação;

– Rever a composição da Conaeti por meio da alteração do decreto 10.574/2020;

– Maior aporte de recursos e execução para a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial;

– Proteger a lei atual que define a idade mínima para o trabalho no Brasil.

“Los ingresos fiscales que genera deben invertirse en programas y servicios que marquen la diferencia para los niños, sobre todo en materia de educación y protección social.” (OIT; UNICEF, 2021, p. 52)[4]

[1] Santos, Elisiane dos. Trabalho infantil nas ruas, pobreza e discriminação: crianças invisíveis nos faróis da cidade de São Paulo. São Paulo, 2017. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/31/31131/tde-01032018-123114/publico/Corrigida_ElisianeSantos.pdf>

[2] Aqui considera-se a linha histórica de 2014 a 2022, pois o Plano Orçamentário intitulado: Ações Estratégicas de Enfrentamento ao Trabalho Infantil só aparece no Siga Brasil (portal utilizado para análise dos dados orçamentários) a partir desse ano.

[3] Criança participante do Projeto Onda: Adolescentes em Movimento pelos Direitos do Inesc.

[4] OIT – Oficina Internacional del Trabajo y UNICEF – Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia, Trabajo infantil: Estimaciones mundiales 2020, tendencias y el camino a seguir, OIT y UNICEF, Geneva and Nueva York, 2021.

Sexo em troca de comida, violência contra crianças indígenas

 

Foto: Marcello Casal Jr | Agência Brasil

O estupro é uma das violências mais bárbaras que a humanidade é capaz de cometer contra si mesma.

A violência sexual tem uma direção: dos mais fortes e poderosos para as pessoas em condições fragilizadas ou subalternizadas. Inclui-se nessa lógica a força física, idade, cor da pele, etnia, desigualdades econômicas, gênero, sexualidade, questões culturais e morais. Cada aspecto desses, e tantos outros, implica a configuração de assimetrias e opressões que dão suporte para a ocorrência da violência sexual. Com o acúmulo dessas dimensões, o estupro de crianças é especialmente grave e produz efeitos irreparáveis, marcando vidas inteiras de forma irreversível, quando não a morte.

Com a licença do povo Yanomami, tomemos a sua dor para pensar sobre todas as infâncias brasileiras. Em abril de 2022, o estupro e a morte de uma menina Yanomami foram amplamente noticiados. Essa não foi a primeira vez que uma criança indígena foi violada; aliás, desde que  Brasil é Brasil, a violência sexual se faz presente. O contato entre os colonizadores europeus e os povos originários já sinalizava o trágico destino de mulheres indígenas, violência essa que se estendeu mais tarde às escravizadas, aquelas que foram arrancadas de suas terras para serem exploradas pelos que aqui chegaram. Embora protegidas por privilégios, as mulheres brancas também não foram poupadas.

Ao longo da história, são incontáveis os casos de meninas indígenas sequestradas de suas comunidades para casar e servir aos seus agressores, assim como os de homens brancos usufruindo à força de corpos de meninas e mulheres negras. Muitas crianças nasceram desses estupros dando início a uma miscigenação que foi tratada, por muito tempo, como fruto da cordialidade brasileira, discurso que camuflou um mundo de perversidades.

A violência sexual não vem sozinha. Está sempre associada a muitas outras agressões e violações de direitos, mas na sua base podemos dizer que a desumanização é condição para que a bestialidade se consolide. Os garimpeiros são homens, né? Eles vão atrás de riqueza, e isso gera muitos conflitos. Eles não respeitam as mulheres. As mulheres dentro dos garimpos estão na prostituição, estão ali fazendo o serviço que eles querem. Não há respeito porque eles veem as mulheres como um objeto que eles têm ali dentro e que serve a eles” explica Telma Taurepang, coordenadora geral da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB).[1]

O garimpo ilegal, geralmente associado a facções criminosas, avança rapidamente sobre o território Yanomami. Além de degradar o ambiente com desmatamento e contaminação do solo e das águas com mercúrio trazendo seríssimas agravos à saúde, favorece a ocorrência de estupros e da exploração sexual de crianças. Estabelece dinâmicas destruidoras nas comunidades. Estudos e reportagens mostram a estreita relação entre garimpo ilegal e violência.

O relatório da Hutukara Associação Yanomami (2021) denuncia a barganha que os garimpeiros fazem com a comida: “Após os Yanomami solicitarem comida, os garimpeiros rebatem sempre. (…) ‘Vocês não peçam nossa comida à toa! É evidente que você não trouxe sua filha! Somente depois de deitar com tua filha eu irei te dar comida!’”. Na percepção da maioria das mulheres indígenas, diz o relatório, os garimpeiros representam uma terrível ameaça, geram muito medo. São homens violentos que causam terror e angústia permanente nas aldeias. Ainda segundo o relatório, “este é o pior momento de invasão da Terra Indígena Yanomami, desde a demarcação e homologação há 30 anos”.

A pesquisa “Violência física e sexual em crianças e adolescentes no Amazonas, o panorama de uma década” (2022) – levantamento realizado por Patrícia Leite Brito, Rebeca Figueira da Costa, Rayane Thaise Neri de Souza e publicado no Brazilian Journal of Health Review – revela que os casos de estupro em crianças e adolescentes no estado do Amazonas – vêm demonstrando crescimento linear e contínuo.

Descaso do governo brasileiro

As violências crescentes revelam o descaso com que o governo brasileiro lida com o tema. A ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, por exemplo, disse que as crianças da ilha do Marajó são estupradas por falta de calcinha, responsabilizando as meninas pela violência sofrida. Agora, diante da menina Yanomami ela diz: “-Lamento, mas acontece todo dia”, com uma frieza inaceitável. Damares cita o Plano Nacional de Enfretamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, como ação de sua pasta. No entanto, a falta de transparência da ação no Orçamento Público e sua execução orçamentária não mentem. De acordo com estudo produzido pelo Inesc – “Brasil com Baixa Imunidade, Balanço do Orçamento Geral da União (2019)” fica evidente a redução drástica de recursos públicos ao longo dos últimos anos destinados especificamente ao enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes, chegando ao seu desaparecimento em 2019. E até os dias atuais, não há nenhuma ação específica na peça orçamentária para enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes. E no que diz respeito ao trabalho infantil, os recursos para seu enfrentamento caíram 20 vezes em 2021 quando comparado com 2019. Ou seja, o orçamento para esta ação perdeu 95% de 2019 para 2021 (Balanço do Orçamento Geral da União – 2021).

A Execução da fiscalização para erradicação do trabalho infantil também chega a 2019 sem recursos.

O então ministro da Educação Abraham Weintraub disse em alto e bom som que odeia o termo ‘povos indígenas’ e ‘povos ciganos’, registrando o seu inequívoco desprezo pela diversidade brasileira.

No que diz respeito à Segurança Pública, a Polícia Federal declarou não ter encontrado indícios de crime onde a menina Yanomami foi estuprada e morta causando espanto a toda uma população que espera por justiça.

Já o chefe do executivo, quando candidato à Presidência da República, em 2018, afirmou durante a campanha eleitoral:“No que depender de mim, não terá mais demarcação de terra indígena”, anunciando sua intenção de usurpação de terras e desproteção dos povos, o que, já sabemos, implica diretamente na produção da violência.

Ironicamente, o presidente Jair Bolsonaro comprometido com tanto desmonte foi condecorado pelo Ministério da Justiça com a medalha Mérito Indígena mesmo defendendo exploração de minério em território protegido, não reconhecendo a autodeterminação dos povos (“índio é pobre coitado”). A medalha perde seu significado e se torna patética no pescoço de um ser desprezível que ancora seu governo em mentiras, desmontes e desprezo pela vida.

O complexo enfrentamento

Para enfrentar a violência e exploração sexual de crianças e adolescentes indígenas são necessárias diversas políticas públicas articuladas e um plano objetivo de prevenção, de amparo às vítimas e responsabilização dos agressores. Sugerimos algumas diretrizes:

  • Formulação de um banco de dados criterioso, com levantamento de dados e análises periódicas, de modo a considerar territórios, etnias, perfis das vítimas, locais, situações e contextos que orientem a formulação das políticas públicas mais adequadas a cada realidade.
  • Combate à fome e à pobreza que tanto vulnerabilizam diversos grupos sociais em diferentes territórios.
  • Participação popular, especialmente de crianças e adolescentes, para que as vozes de cada comunidade ecoem, sejam respeitadas suas denúncias e que participem da elaboração de propostas de enfrentamento à violência e à exploração sexual infanto-juvenil.
  • Ação firme do Estado para romper com a naturalização da violência sexual, com políticas educacionais e de comunicação, destacando a educação sexual e educação de gênero como direito.
  • Prevenção e erradicação do trabalho infantil como formas de proteger crianças e adolescentes da exposição a múltiplos riscos.
  • Fortalecimento e ampliação do alcance da campanha Faça Bonito – 18 de Maio – “Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes” entrando nas escolas privilegiando a formação de estudantes e educadores.
  • Fomento de pesquisas acadêmicas sobre gênero, violências, infância e adolescência, segurança pública, educação e outros que deem subsídios para aprimorar as ações do Estado.
  • Educação para crianças e adolescentes no campo da segurança digital, fortalecendo-as para o uso seguro da internet.
  • Fortalecimento das políticas de assistência social para amparar e cuidar das vítimas.
  • Formação de profissionais da saúde para, além de atender com dignidade e respeito às vítimas, fazer a notificação e alimentar os bancos de dados.
  • Apuração e responsabilização de todas as notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes, em especial, crianças indígenas.

Ressaltamos ainda que, de nada vale um plano, se não houver orçamento adequado e sua execução exemplar.

Lembrar é combater

Neste dia 18 de maio, trazemos à memória a menina Araceli para manter a indignação, não naturalizarmos a violência e sensibilizar a sociedade em geral.

Hoje, em nome da criança Yanomami, nossa indignação e tristeza intensificam a luta para que todas as crianças, com diferentes cores e sotaques, com diferentes jeitos, línguas e corpos, sejam reconhecidas nas suas diferenças e tenham uma infância disponível para a alegria.

 

(Publicado originalmente na Carta Capital Online)

[1] Brasil de Fato, 2 de maio de 2022

Fundo Nacional do Meio Ambiente: caminhando rumo à repartição justa dos recursos para a proteção ambiental

Ao mesmo tempo em que na COP 26 o governo brasileiro busca demonstrar, sem sucesso, empenho em proteger as florestas e o meio ambiente e pede aos países ricos recursos para financiar as políticas ambientais, o Congresso decide sobre qual será o orçamento para o meio ambiente em 2022.

Tanto em Glasgow quanto no Congresso, um tema chave permanece quase desconhecido e mal resolvido: a necessária repartição justa dos recursos para o meio ambiente entre os entes federativos, para que assumam de forma mais consistente sua parte na competência comum de proteger o meio ambiente, como estabelece a Constituição Federal. Hoje, essa repartição é feita de maneira desigual e os estados e municípios, em especial os da Amazônia, sofrem com crônica falta de recursos.

Um passo histórico nesta direção foi dado por meio da criação do Fundo Nacional de Meio Ambiente (FNMA), aprovado um ano depois da Constituição, pela Lei nº 7.797, de 10 de julho de 1989. Essa lei estabelece que os recursos do FNMA deverão ser aplicados através de órgãos públicos dos níveis federal, estadual e municipal ou de entidades privadas sem fins lucrativos, cujos objetivos estejam em consonância com os do Fundo.

Mas, na prática, pouco se avançou. Em primeiro lugar, porque os recursos são muito pequenos, R$ 30 milhões em 2021, sendo sua principal fonte 20% dos valores arrecadados em pagamento de multas aplicadas pelo Ibama e pelo ICMBio[1]. Além disso, nenhum centavo dos recursos autorizados no FNMA foi executado nas ações finalísticas de 2019 até o presente ano.

Nesse quadro, o fortalecimento orçamentário do Fundo e a transferência de recursos aos estados – por meio de emendas parlamentares ao Projeto de Lei Orçamentária Anulal (PLOA 2022) – pode constituir importante apoio para que as secretarias estaduais de meio ambiente possam atuar em duas áreas críticas: na fiscalização e no licenciamento ambiental.

Hoje, os poucos recursos do Fundo, uma média de R$ 40 milhões anuais nos últimos seis anos, têm sido quase integralmente destinados à reserva de contingência financeira do Ministério do Meio Ambiente. Tal despesa financeira é alocada em cada órgão e destina-se, em especial, ao cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal e  do Teto de Gastos. Em poucas palavras, bem claras: o recurso não é gasto.

Ainda que se considere a amarra fiscal, é altamente questionável que os recursos do FNMA sejam comprometidos com esta reserva financeira.

Os insuficientes recursos do Fundo são ainda disputados por outros setores. Um projeto de lei relatado pela deputada Carla Zambelli (PSL-SP) pretende desviar os recursos do FNMA de seus objetivos, destinando parte do dinheiro para empresas que atuem na construção de projetos de usinas eólicas e solares, setor sem dúvida importante, mas que já conta com programas de incentivo.

A  crônica falta de recursos nos estados

Os estados, em especial os da Amazônia Legal, sofrem com a crônica falta de recursos para a política ambiental, isto sem falar da situação ainda mais crítica dos municípios. A base de arrecadação própria destes estados é reduzida em decorrência da preponderância de atividades econômicas primárias-extrativas (entre elas as ilegais, a exemplo do desmatamento), e dos efeitos perversos oriundos da Lei Kandir. Por exemlo, com o ICMS – que compõe mais de 80% da arrecadação dos estados – o Pará recolhe apenas 9%, se comparado com o imposto arrecadado por São Paulo. O Acre arrecada apenas 1% do ICMS de São Paulo.

Reconhecendo a também baixa prioridade política de todos os entes na destinação de orçamento para o meio ambiente, a falta de recursos para o fortalecimento das instituições e das políticas ambientais nos estados tem no seu fundamento a desigual repartição de recursos entre o governo federal e os entes subnacionais.

No contexto de histórica fragilidade institucional e orçamentária dos órgãos estaduais de meio ambiente, em todos os níveis, o FNMA deveria favorecer e priorizar o fortalecimento destes órgãos, por meio da execução descentralizada na forma de transferência de recursos. Ele foi pensado como uma ferramenta que inclui apoio federativo.

O Congresso Nacional, durante a tramitação do PLOA 2022, tem a possibilidade de começar a desmontar a histórica fragilização orçamentária do FNMA. Por meio de emendas é possível ampliar seus recursos, garantir que os mesmos não sejam esterilizados por meio da reserva de contingência e orientar sua execução canalizando mais recursos para as políticas ambientais. Em síntese, fazer valer a missão deste importante fundo como agente financiador para a a implementação da Política Nacional do Meio Ambiente.

No lugar de discursos vazios e da presença insossa do Executivo em Glasgow, a atuação de parlamentares aliados do meio ambiente visando ao fortalecimento do FNMA, incluindo a execução descentralizada de parte relevante de seus recursos, seria um passo louvável rumo à repactuação política-orçamentária-federativa para proteção ambiental.

 

* Alessandra Cardoso é doutora em Economia, espaço e meio ambiente pela Unicamp e assessora política do Inesc

* Suely Araújo é doutora em Ciência Política e ex-presidente do Ibama.

[1] O Decreto Nº 6.686/2008 em seu artigo 13 estabelece que este percentual pode ser alterado, a critério dos órgãos arrecadadores.

Mitos sobre a inflação

Pedro Rossi[1]

A inflação voltou com tudo para os noticiários e para o centro das preocupações dos brasileiros que assistem à corrosão do seu poder de compra pela alta dos preços.

Para controlá-la o receituário tradicional propõe aumentar a taxa de juros e cortar gastos públicos. A inflação é tratada como se fosse um problema neutro do ponto de vista distributivo e o seu combate é apontado como técnico, que supostamente beneficia a sociedade em seu conjunto. Nada mais falso.

A inflação é um problema distributivo que afeta indivíduos e classes sociais de forma distinta e o seu combate também não é neutro. Por isso é necessário analisar o tema para além da superfície, avaliar os impactos da inflação sobre a desigualdade social e identificar quando o discurso do combate à inflação esconde interesses econômicos e de classe.

Este artigo busca destacar essa dimensão política, frequentemente oculta no debate público brasileiro, ao explorar mitos que ocupam o senso comum. Assim, busca-se destacar a natureza do processo inflacionário, o conservadorismo no seu tratamento e o conflito distributivo por detrás da inflação e da política monetária.

Mito 1: Inflação se resolve com aumento dos juros e desaceleração econômica

Resumo: Uma política de desaceleração da economia pode até reduzir a inflação, mas tem um alto custo social arcado especialmente pelos mais pobres. A inflação é um problema distributivo e combater inflação com desemprego fragiliza os trabalhadores. Existem outras maneiras de combater a inflação que seriam mais justas no cenário atual.

A taxa de inflação mede o aumento no nível de preços. Ou seja, é o crescimento dos preços de um conjunto de bens e serviços em um determinado período de tempo. Os índices de inflação contam uma parte da história, mas pouco dizem sobre a variação dos salários, lucros, juros, e outros rendimentos que determinam o ganho ou a perda de poder de compra diante da inflação de trabalhadores e capitalistas. Ou seja, o impacto da inflação na nossa vida, depende também de como a nossa remuneração varia e o combate à inflação também afeta essa remuneração.

Há diferentes caminhos para reduzir a inflação. Hoje, o caminho usado pelo governo é desacelerar a economia por meio de um choque monetário (aumento de juros) e fiscal (corte de gastos), o que reduz demanda por bens e serviços. Esse caminho é um freio nas pretensões de recuperação econômica do Brasil, prejudica principalmente os trabalhadores que saem empobrecidos com a economia estagnada e sem empregos embora beneficie quem tem riqueza financeira para aplicar nos juros altos.

O aumento de juros além de fragilizar famílias endividadas também tem impactos distributivos via política fiscal, pois aumenta o custo do carregamento da dívida do governo que transfere para uma parcela mais abastada da população os serviços dessa dívida.

Além disso, esse tipo de política não resolve, por exemplo, a inflação de alimentos. Isso porque a maior parte dos alimentos é pouco afetada pela política monetária uma vez que seu preço pode depender do preço internacional, de fatores climáticos ou de safra. Nesse sentido, diante de uma inflação de alimentos, uma política monetária contracionista pode agravar um problema de segurança alimentar e nutricional ao provocar desemprego e queda da renda sem reduzir substancialmente o problema no preço dos alimentos.

Há outras políticas que auxiliam no combate à inflação, e que também não são neutras do ponto de vista distributivo. Por exemplo, quando a Petrobras não reajusta para cima os preços de combustível, a população tem acesso a combustível mais barato e a inflação fica menos pressionada, ainda que a distribuição de dividendos para acionistas da Petrobras seja prejudicada. Quando não há reajustes no transporte público, grupos econômicos deixam de lucrar, mas trabalhadores comemoram. Quando o governo lança mão de uma política de controle de preços de alimentos ou de taxação de exportação de commodities, esses ficam mais baratos embora produtores podem sair prejudicados. Portanto, a decisão sobre as formas e os instrumentos de combate à inflação é também uma decisão sobre quem ganha e quem perde.

Uma política de combate à inflação pode estar voltada para a redução da alta de preços de bens e serviços que impactam principalmente sobre os mais pobres, como alimentos, gás de cozinha, serviços de água e energia elétrica e para bens e serviços cujos preços que contaminam os demais, como os combustíveis e energia. Para isso teríamos que resgatar o caráter estatal da Petrobras, assim como fazer uso de instrumentos de política fiscal como subsídios e instrumentos tributários que esbarram na regra do teto de gastos e na lógica da austeridade fiscal.

Em vez disso, e fazendo jus a sua diretriz neoliberal, o governo opta por uma política de desaceleração da economia, que pode até reduzir a inflação, mas tem um alto custo social que recai principalmente sobre os mais pobres. Portanto, a forma de combater a inflação importa, trata-se de uma decisão política com consequências distributivas e não de uma decisão técnica.

Combater a inflação não é uma finalidade em si, mas um meio para garantir bem-estar social e direitos humanos. Para isso é necessário, preservar a moeda e suas funções e o poder de compra da população, especialmente a de mais baixa renda.


Mito 2: Gasto e déficit público geram inflação

Resumo: Muitas vezes ouvimos que o gasto público vai levar a inflação. Esse argumento pode ser falso. Especialmente nos momentos de crise econômica quando há desemprego e empresas com máquinas paradas, o aumento do gasto público pode gerar renda e emprego, sem pressionar a inflação. Também é um mito a ideia de que o governo brasileiro só vai conseguir pagar sua dívida com emissão de moeda e inflação.

O discurso pró-austeridade recorre frequentemente ao fantasma da inflação para justificar os cortes de gastos públicos. Afirmações como “se romper o teto de gastos podemos voltar à hiperinflação” buscam interditar o debate: trata-se de terrorismo econômico, ameaças que criam um clima de medo para coagir a aceitação de uma determinada agenda econômica pela opinião pública.

Há dois argumentos comuns que associam gasto público e inflação no debate público. O primeiro defende que o aumento dos gastos no Brasil levará à uma explosão da dívida pública que só poderá ser paga por meio de emissão monetária. Esse aumento na quantidade de moeda, por sua vez, resultará em hiperinflação.

Há vários problemas nesse argumento. A começar pelo fato de que o aumento da dívida pública em relação ao PIB é decorrência de diversos fatores e não apenas das decisões de gasto, como a própria redução do crescimento econômico e a queda da arrecadação pública. A estabilização da dívida pública pode ser alcançada, não com corte de gastos, mas com a retomada do crescimento e do aumento da arrecadação pública. Além disso, não existe um patamar especifico de dívida pública que torne o país incapaz de se financiar com títulos públicos, sendo obrigado a emitir moeda.

O segundo argumento aponta que o déficit público (quando as receitas são menores que as despesas) exerce pressão adicional sobre a demanda por bens e serviços, provocando aumento de preços. O argumento pode ser verdadeiro, mas não necessariamente. Primeiro, porque o déficit público pode ser causado por uma redução da arrecadação que por vezes contribui para redução da inflação. Por exemplo, quando se desoneram produtos da cesta básica a tendência é de aumento de déficit associado à queda (e não aumento) dos preços desses produtos, o que ameniza a inflação.

Além disso, o efeito inflacionário de um aumento do gasto público depende do momento do ciclo econômico em particular da utilização dos fatores de produção de uma economia, trabalho e capital. O tema é complexo mas pode ser pensado de forma intuitiva.

Quando a economia está em pleno emprego e empresas utilizam toda sua capacidade produtiva, um gasto público tende a gerar a inflação, pois aumenta a demanda no momento em que a capacidade de oferta está dada. Por exemplo, quando o governo contrata uma empresa para a construção de uma estrada. Essa, ao operar em plena capacidade, pode deixar de atender projetos do setor privado para atender o setor público e, além disso, pode pedir preços maiores do que de costume, o que gera inflação.

No entanto, quando há desemprego e capacidade ociosa nas empresas, esse mesmo gasto não gera inflação, mas emprego e aumento da renda. Daí a importância do uso do gasto público em momentos de crise econômica e desemprego, na contramão das políticas de austeridade adotadas no Brasil. Portanto, gasto público e déficit público não são necessariamente fontes geradoras de inflação, especialmente em momentos de crise econômica.

 

Mito 3: A inflação é um problema técnico, logo precisamos de um Banco Central independente

Resumo: A decisão sobre as formas e os instrumentos de combate à inflação é também uma decisão sobre quem ganha e quem perde. A defesa de um banco central autônomo ou independente ignora esses aspectos e propõe blindar gestores supostamente técnicos de políticos e eleitores supostamente ignorantes. No entanto, essa visão tecnocrática favorece a captura do banco central pelo mercado cuja rentabilidade é afetada pela atuação do banco central na regulação do sistema financeiro, na definição da taxa de juros, nas interferências na taxa de câmbio, etc. 

A defesa de um banco central autônomo ou independente propõe blindar gestores supostamente técnicos de políticos e eleitores supostamente ignorantes. Com isso, a instituição teria mais credibilidade junto aos investidores internacionais e nacionais, o que levaria um melhor controle da inflação e à queda da taxa de juros.

Mas a autonomia aumenta o poder do mercado financeiro sobre o banco central e favorece a chamada “porta giratória” que ilustra o movimento de quadros do setor privado para o setor público e vice-versa. Ou seja, o Banco Central nomeia, para seu quadro de diretores, profissionais do mercado financeiro que têm incentivos para favorecer seus antigos (e prováveis futuros) chefes. A atuação do banco central interfere na própria rentabilidade do mercado financeiro ao atuar sobre variáveis como a inflação, taxas de juros e de câmbio e ao regular as instituições financeiras. Isto é, na hora de escolher quem ganha e perde com o combate à inflação, o Banco Central pode arbitrar em favor das demandas do mercado a despeito das necessidades da população.

De acordo com um estudo publicado no Banco Mundial[2], um banco central independente tende a aumentar a desigualdade por três motivos. Primeiro porque a instituição pode constranger indiretamente a política fiscal e enfraquecer a capacidade do governo de usar o gasto público como instrumento de redistribuição. Segundo, porque incentiva a desregulamentação financeira, o que gera ganhos para o setor financeiro e bolhas de preços. E, por fim, quando na presença de pressões inflacionárias, faz uso de uma política monetária excessivamente conservadora com aumentos excessivos de juros, o que enfraquece o poder de barganha dos trabalhadores.

Portanto, a inflação não é um problema meramente técnico e um banco central independente tende a favorecer politicamente os interesses do mercado financeiro.

 

Desmistificar para uma política monetária mais justa

Esse breve artigo teve como objetivo estimular o interesse por um debate dominado por um falso tecnicismo e por uma visão estigmatizada sobre inflação.

Não há um patamar mágico para inflação. Sabe-se que uma inflação muito alta pode desorganizar a economia, favorecer a indexação e comprometer a confiança na moeda. No entanto, uma inflação muito baixa também pode não ser saudável como mostram processos históricos de deflação que desestruturam a economia e geram recessão e desemprego.

No Brasil, a inflação é muito suscetível aos choques de preços de commodities, à volatilidade da taxa de câmbio e à indexação de contratos. Sem resolver esses problemas, dificilmente teremos uma inflação baixa como àquela apresentada em países centrais.

Apesar disso, o Banco Central brasileiro tem reduzido a meta de inflação, prevista para 3% em 2024. A decisão se mostra conservadora e os custos de perseguir uma inflação tão baixa pode ser o desemprego que representa a violação do direito humano ao trabalho, além de um desperdício de recursos produtivos.

Portanto, a inflação é um problema econômico complexo. Não se trata de um inimigo comum que afeta a toda população da mesma forma, mas de uma variável cujas causas e consequências afetam a distribuição de recursos entre classes sociais e setores produtivos. Evitar cair no lugar comum nesse debate é difícil, mas necessário, especialmente quando a obsessão com o combate inflacionário resulta em desemprego, juros altos, menos recursos para a garantia de direitos humanos e empobrecimento da população.

[1] O autor agradece as contribuições de Nathalie Beghin e Livi Gerbase, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O Inesc está trabalhando em um projeto internacional de conexão entre política monetária, investimentos sociais e direitos humanos, com a divulgação de vários produtos e eventos nos próximos meses. Para saber mais, visite www.inesc.org.br.

[2] Artigo Michaël Aklin, Andreas Kern and Mario Negre, publicado em 2021, intitulado “Does Central Bank Independence Increase Inequality?”.

 

COP 26: o avesso, do avesso, do avesso 

Há poucos meses da realização da Conferência do Clima da ONU, a COP 26, uma coisa já está evidente: tem sido um ano difícil para as negociações planejadas para acontecer em novembro.

 

Depois do seu adiamento, em 2020, por causa da pandemia da Covid-19, o secretariado da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês) prometeu a realização do encontro para 2021. No entanto, entre maio e junho deste ano, a experiência de um diálogo por meio digital com o ​​Órgão Subsidiário de Aconselhamento Científico e Tecnológico (SBSTA, na sigla em inglês) foi marcada por muitas frustrações, manifestadas, em particular, por delegados dos países do Sul Global e pelos representantes da sociedade civil que acompanham o debate sobre mudanças climáticas.

 

Com o objetivo de sistematizar algumas das discussões que vêm sendo feitas, entre especialistas e chefes de estado e governos, sobre as condições para a realização deste evento, reunimos cinco razões pelas quais acreditamos que a conferência do clima da ONU deveria ser adiada mais uma vez.

 

  1. Pandemia

 

A pandemia não acabou. Embora muitos países do Norte Global estejam avançados nos esforços de imunização das suas populações, o surgimento da variante Delta ameaça com uma nova e fulminante onda da doença. Nos países do Sul Global, dificuldades relacionadas à compra, à distribuição e, mesmo, à vontade política para proceder a imunização deixaram essas sociedades em situação de extrema vulnerabilidade, sendo a cobertura vacinal ainda hoje muito precária nesses lugares.

 

Nos últimos dois anos, aprendemos muito a respeito do vírus que causa a Covid-19, mas não o suficiente para expor pessoas ao risco de contrair uma doença que pode ser fatal. Da mesma forma, embora logicamente necessária, a proibição de entrada no Reino Unido dos “não-vacinados” representa uma perda para a diversidade e a complexidade dos debates levados a cabo durante a Conferência.

 

  1. Internet

 

O acesso à internet foi consagrado um direito humano de quarta geração, a partir do seu reconhecimento pela ONU (em interpretação à Declaração Universal dos Direitos Humanos). No entanto, as desigualdades relacionadas à efetiva concretização deste direito são conhecidas, e se tornaram ainda mais evidentes durante o encontro do SBSTA, entre maio e junho de 2021.

 

Há, nos bastidores da Conferência, um burburinho que deixa inferir grande insatisfação com o modelo híbrido escolhido para a discussão, isto é, ao mesmo tempo presencial e virtual. Quem participou do evento por meio virtual relatou problemas com uma espécie de “acreditação virtual”, em particular, com o funcionamento dos códigos de acesso às salas virtuais (que substituíram os crachás das discussões oficiais), bem como dificuldades para acompanhar as discussões pela má qualidade da internet nos seus países de origem.

 

De modo semelhante, no Brasil, o acesso à internet é excludente, e afeta, sobretudo, regiões não alcançadas pelo interesse do mercado de telecomunicações. Isso significa que povos e comunidades do campo-floresta-águas poderiam ficar de fora de debates que os afetam diretamente, tais como os que devem se debruçar sobre a regulamentação das formas de capitalização das riquezas naturais presentes em seus territórios.

 

  1. Custos

 

Os custos de participação na COP 26 serão elevadíssimos! O preço de 1 libra esterlina equivale a mais do que 7 reais. Este foi um dos fatores que convenceu o governo britânico a reduzir o tempo de quarentena exigido dos participantes. Contudo, a “lista vermelha” de países, ou seja, aqueles que acendem o alerta da política sanitária global, continua a incluir majoritariamente latino-americanos e africanos, além de alguns asiáticos. Para estes países, somam-se cinco dias de hospedagem, deslocamento e alimentação aos já quase quinze dias de Conferência.

 

  1. Transparência e participação

 

Um dos temas abordados nesta edição da COP é a transparência na definição das metas e das métricas climáticas adotadas por cada país, já que as contribuições nacionais são voluntárias, ou seja, não são definidas compulsoriamente pelo Acordo de Paris sobre o Clima. No entanto, como vimos, a própria construção da Conferência está atravessada por questões relativas à transparência e às condições para a participação (não tanto das delegações oficiais, embora elas também tenham sofrido com problemas, mas, especialmente, da sociedade civil).

 

Com isso, a legitimidade das discussões e das decisões tomadas durante o evento poderá ser colocada em xeque, e não só por quem foi deixado de lado, sem ser ouvido. Arriscar a legitimidade de um processo que, embora esteja longe do ideal, foi construído sobre uma preocupação real com a democracia e a representação das vozes de todo o mundo é lamentável, principalmente no atual contexto de negacionismo científico e climático.

 

  1. Agenda

 

A COP 26 já está sendo descrita como um novo grande momento das negociações climáticas internacionais. A expectativa é que, nesta edição do evento, o chamado “livro de regras”, documento que regulamenta os artigos do Acordo de Paris, seja finalizado. Nesse sentido, dois temas são cruciais, considerando a inserção brasileira na negociação:

 

(i) o primeiro deles diz respeito ao aumento das ambições dos países para evitar a elevação das temperaturas globais em 1,5ºC, em comparação com os 2ºC de antes. As pressões neste sentido refletem uma série de relatórios e estudos que apontam para a aceleração do aquecimento global.

 

(ii) o segundo relaciona-se ao financiamento das políticas climáticas em cada país, especialmente nos mais pobres. Aqui entra em cena o artigo 6 do Acordo de Paris, que prevê o estabelecimento de mecanismos de mercado e de não-mercado para levantar recursos ao esforço climático.

 

De olho na política brasileira, os grandes incêndios em biomas tais como a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal tendem a reduzir ou a eliminar a capacidade do Estado para se comprometer com a meta de 1,5ºC. Já no que tange ao modelo de financiamento planejado para o esforço climático, é possível dizer que a ênfase no uso e na criação de serviços financeiros para essa finalidade reflete uma certa fé cega na convergência de interesses entre o público e o privado, matizada pelo discurso da crise fiscal dos países.

 

Como resultado, observamos uma progressiva erosão do compromisso público em relação ao combate às mudanças climáticas, além da transferência, para empresas e indivíduos ou consumidores, da responsabilidade pela implementação de medidas, lucrativas ou filantrópicas, que sejam capazes de promover um funcionamento “verde” da economia.

 

Portanto, a finalização do livro de regras de Paris, durante a COP 26, deverá apontar para um novo paradigma de desenvolvimento que tem o meio ambiente no centro da elaboração política, ao mesmo tempo que aprofundará o processo de financeirização da economia e da vida. Esse quadro trará consequências dramáticas para os povos do campo-floresta-águas. E, por isso, não pode ser decidido sem esses povos.

 

O desafio do ECA em tempos de pandemia

Julho é o mês em que celebramos o aniversário do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Mês de balanços e reflexões. Impossível hoje pensar na infância sem se levar em conta o contexto da pandemia. Com isso, é importante reforçar a ideia de que a proteção da criança depende também do grau de proteção em que se encontra a sua comunidade. Hoje, com mais de meio milhão de mortos pela Covid-19, os bairros com as piores condições de vida concentram o maior número de vítimas, evidenciando os impactos das desigualdades no cenário trágico da pandemia.

A Mortalidade

No início da pandemia alardeou-se a necessidade de proteção aos mais velhos, sem se conhecer exatamente os efeitos sobre crianças. No entanto, segundo dados do Sistema de Informação de Vigilância da Gripe (Sivep-Gripe), até de maio de 2021 morreram948 crianças de 0 a 9 anos por Covid-19 no Brasil. As principais vítimas foram bebês de até 2 anos. Pesquisa realizada pela Agência Pública de Jornalismo Investigativo em São Paulo revela que 93% dos casos de mortes de crianças e adolescentes por Síndrome Respiratória Aguda em 2020 eram de bairros periféricos ou de baixa renda[i]. A realidade fica mais estarrecedora quando comparada a de outros países. O Reino Unido e a França, por exemplo, registraram apenas 4 mortes de crianças de 0 a 9 anos, o que dá uma taxa de 0,5 morte por milhão em cada um dos países. Além de ter destinado valores irrisórios para a saúde da criança, R$ 5 milhões em 2021, o governo brasileiro executou apenas 2,6% até junho do corrente ano. Já para a saúde do adolescente nada foi gasto. Cabe destacar que o Brasil é o segundo país no mundo com o maior número de óbito de crianças por Covid-19; fato que explicita descaso com o público que é, segundo o ECA, PRIORIDADE ABSOLUTA.

A Desigualdade Racial

Cida Bento, diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), tem denunciado a ocultação ou manipulação do dado raça/cor nas notificações com relação à pandemia, de modo a não termos informações precisas que reflitam a situação de crianças e adolescentes negras; dados fundamentais para orientar uma resposta que seja eficiente para reduzir desigualdades e proteger a todos/as com atenção especial às pessoas vulnerabilizadas. A despeito da subnotificação, de acordo com o Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe), 57% das crianças mortas pela Covid-19 no Brasil eram negras. As crianças brancas correspondem a 21,5% das vítimas, as amarelas (de origem asiática) a 0,9% e 16% não tiveram raça indicada.

A Orfandade

Além das vítimas diretas da Covid-19, até junho de 2021 a pandemia produziu em torno de 45 mil órfãos, segundo estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Como se não bastasse, a perda da mãe ou do pai, crianças também sofreram com a morte de parente a quem amava e/ou que era responsável pelo sustento da família. No que diz respeito ao Auxílio Emergencial, em 2021 foram autorizados no orçamento público cerca de 4 vezes menos recursos (R$ 164 bilhões em 2020 versus R$ 43 bilhões em 2021), de acordo com levantamento do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) sendo que a fome e o desemprego chegaram a níveis alarmantes.

A Violência Policial

Pensando na proteção à vida durante a pandemia, mães fazem esforço para manter os filhos em casa. No entanto, algumas foram surpreendidas quando suas crianças foram assassinadas em ações cujos principais suspeitos eram policiais. Foi o que aconteceu com João Pedro, 14 anos, que levou um tiro de fuzil nas costas quando brincava dentro de casa. Com Guilherme Guedes, de 15 anos, encontrado morto depois de desaparecer em frente à casa da avó. E com Igor Rocha Ramos, de 16 anos, morto quando comprava pão na padaria, enquanto sua mãe estava em casa com Covid-19.

O dia 6 de maio de 2021 nunca será esquecido pela comunidade de Jacarezinho (RJ). Uma operação da Polícia Civil mal explicada resultou na morte de 29 pessoas, a operação policial mais letal ocorrida na cidade do Rio de Janeiro, e uma das maiores do estado. O pretexto era combater o aliciamento de crianças para o tráfico, no entanto, além da suspeita não se confirmar, um adolescente de 18 anos foi executado.

A Precariedade da Educação

Na área da educação a situação é bastante preocupante. As propostas das respectivas Secretarias de Estado de Educação têm se concentrado em aulas virtuais. No entanto, o acesso à internet não foi universalizado, assim como grande parte das famílias não dispõem de equipamentos, nem estão todas preparadas para fazer o acompanhamento pedagógico demandado pela escola. Segundo o Ipea, em 2020, mais de 1,8 milhões de estudantes não tinham equipamentos para estudar e 5,5 milhões não tinham acesso à internet.

Além disso, a função educação no Orçamento Geral da União vem sofrendo queda brutal nos valores autorizados desde 2016, como mostrou o Inesc em recente balanço. Em números atualizados pelo IPCA em 2021 a educação tem R$30 bilhões a menos, quando necessitaria muito mais para garantir acesso às aulas e atender às demandas geradas na crise sanitária.

Para enfrentar as consequências da pandemia faz-se necessário atenção permanente e iniciativas imediatas que mitiguem os efeitos danosos sobre todas as pessoas, mas em especial sobre as que já estavam esquecidas pelo poder público. O ECA exige inovações e respostas rápidas. Diante disso, é imprescindível (i) destinar recursos para as políticas de proteção e promoção de direitos, como saúde, assistência social e educação; (ii) elaborar planos objetivos de prevenção à violência e ao trabalho infantil em todos os níveis da federação; (iii) formar conselhos com participação de diversos segmentos da comunidade escolar para desenhar e implementar coletivamente planos de volta às aulas presenciais considerando a universalidade do direito. Além de escolas dignas e equipadas adequadamente, educação de qualidade em igualdade de condições é o mínimo que se espera para que todas as crianças e adolescentes vislumbrem trajetórias de vida plenas, mais felizes.

Quando um presidente da república tira a máscara de uma criança em evento público, ele manda um recado ao país: desprezo pela vida. Sem ação eficaz e urgente do Estado na forma de políticas públicas, a lei não passa de letra morta.

[i] https://apublica.org/2020/06/desigualdade-social-e-fator-de-risco-para-mortes-de-criancas-e-adolescentes-por-covid-19-no-pais/

Vetos do Bolsonaro ao Orçamento 2021: mais uma afronta à garantia de direitos

No último dia 22 de abril, o presidente Bolsonaro sancionou o orçamento para 2021, após um longo e tortuoso percurso, como analisado pelo Inesc. O orçamento aprovado pelo Congresso Nacional havia subestimado despesas obrigatórias e aumentado os recursos para emendas parlamentares, o que obrigou o Executivo a realizar cortes.

Para além do veto, o governo bloqueou despesas, uma nova prática orçamentária introduzida na Lei de Diretrizes Orçamentárias 2021 (a partir do PLN 02/2021). Por meio destes dois dispositivos, o governo cortou R$ 29 bilhões do orçamento, com o objetivo de cumprir o Teto de Gastos.

Mas quais são as consequência destes vetos na garantia dos direitos humanos? Algumas áreas, que já são subfinanciadas há anos, foram, mais uma vez, alvo da tesoura governamental. Pode-se mencionar a saúde e a educação, áreas fundamentais para o enfrentamento à pandemia, além dos cortes para as ações do meio ambiente, prática comum do atual governo. Assim, dá-se continuidade as medidas de austeridade em prol das atuais regras fiscais, a principal delas,  o Teto de Gastos.

Confira a análise por área abaixo:

Saúde: cortes de ações fundamentais para o enfrentamento da crise sanitária

Da função saúde foram vetados R$ 2,2 bilhões. Pode parecer pouco em relação aos R$ 136 bilhões aprovados pelo Legislativo, mas considerando que os recursos na Lei Orçamentária Anual (LOA) encaminhada para sanção presidencial já eram baixos, com certeza esta diminuição será sentida. Todas as unidades orçamentárias do Ministério da Saúde tiveram algum valor reduzido, com exceção da Anvisa. A que sofreu o maior corte (8% do orçamento do autógrafo) foi a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), responsável por ações de saneamento e saúde ambiental.

As ações que tiveram o maior volume de recursos vetados são diretamente relacionadas à Covid-19. A ação 2F01, voltada para o enfrentamento da pandemia, que apresentava valor ínfimo comparado a 2020, foi cortada pela metade, restando apenas R$ 620 milhões. A outra ação é referente a um incremento ao custeio de serviços hospitalares, que teve uma redução de R$ 600 milhões, equivalente a quase 10% do orçamento aprovado pelo Congresso Nacional antes dos vetos.

A estratégia do governo Bolsonaro de prever pouquíssimos recursos para o combate à Covid-19, somada ao desfinanciamento da Saúde, tem impactos nefastos. Exemplo disso é o ritmo lento de vacinação da população e a falta de insumos para o tratamento da doença, como remédios e oxigênio, que contribuem para prolongar e agravar a pandemia.

Educação: 30% dos bloqueios de Bolsonaro foram para esta área

A situação do orçamento da educação é gravíssima e não é possível ver a luz no final do túnel. Para 2021, duas regras fiscais recaíram como bombas para a política pública. Em razão da Regra de Ouro, ficou dependente de aprovação via crédito suplementar cerca de R$ 55 bilhões para a educação. Para além desta regra, o que foi aprovado pelo Congresso Nacional em parte foi vetado pelo Executivo. Houve um bloqueio geral de R$ 9,2 bilhões, dos quais R$ 2,7 bilhões apenas na educação, ou seja, cerca de 30% do total.

Quer entender o que é a Regra de Ouro e as outras regras fiscais? Confira nosso guia “Para Ler o Orçamento

A ação orçamentária da educação que teve um dos maiores cortes na LOA 2021, de acordo com a nota informativa da Consultoria de Orçamento, foi “Apoio à Infraestrutura da Educação Básica”, que tem como objetivo, de acordo com o Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop), fornecer apoio técnico, material e financeiro para construção, ampliação, reforma e adequação de espaços escolares e para aquisição de mobiliário e equipamentos para todas as etapas e modalidades da educação básica. Mesmo com todos esses cortes para a educação, principalmente para a ação de recursos necessários para garantir escolas seguras, a Câmara dos Deputados achou prudente aprovar o Projeto de Lei 5.595/2020, que obriga a volta às aulas presenciais, que segue para apreciação do Senado.

Meio Ambiente: em contraposição ao discurso de Bolsonaro na Cúpula do Clima, mais cortes para a fiscalização de desmatamentos

Na área de meio ambiente, foram vetados R$ 235,32 milhões no total: R$ 19,38 milhões no Ibama, R$ 7 milhões no ICMBio, R$ 204 milhões no MMA, R$ 3,13 milhões no Fundo Nacional de Meio Ambiente e R$ 1,71 milhões no Instituto Jardim Botânico.

No caso do Ibama, o veto ocorreu justamente nas ações de fiscalização e combate ao desmatamento ilegal (ações 214M e 214N). No final, para o Ibama como um todo, de um orçamento para ações finalísticas que era de R$ 258 em 2019, houve um encolhimento para R$ 135 milhões em 2021, ou seja, uma redução de R$ 123 milhões em um orçamento já muito baixo. Não foram considerados neste cálculo os recursos transferidos aos estados da Amazônia oriundos do acordo anticorrupção da Lava Jato.

Quanto ao ICMBio, a ação orçamentária que responde por toda a política de gestão das áreas protegidas sofreu o veto de R$ 7 milhões em um orçamento que já inviabilizava a existência do órgão. No ano de 2021, os recursos finalísticos autorizados para o órgão serão de apenas R$ 73 milhões, um valor R$ 38 milhões inferiores ao orçamento para o ano de 2020.

O veto mais elevado em termos de valor, no total de R$ 203,91 milhões, foi no próprio Ministério do Meio Ambiente, na ação “Implementação de Programas, Planos e Ações para melhoria da qualidade ambiental urbana”. Como analisado pelo Inesc, esta ação havia tido seu orçamento inflado durante a tramitação do PLOA 2021. Com estes recursos o Ministro do Meio Ambiente pretendia multiplicar pelo país usinas de geração de energia a partir de resíduos sólidos urbanos.

Cabe destacar, contudo, que depois destes pesados vetos e de mais um vexame internacional com o discurso falacioso do governo federal durante a Cúpula do Clima, o Ministro do Meio Ambiente anunciou em redes sociais a solicitação ao Ministério da Economia de uma suplementação de R$ 270 milhões para os órgãos ambientais, sem especificação de quais ações, sendo: R$ 72 milhões para o ICMBio; R$ 198 para o Ibama, sendo que R$ 142 milhões direcionados para as atividades de fiscalização. Tal suplementação não foi ainda viabilizada.

Indígenas: mais cortes em um orçamento em queda histórica

Apesar de não ter havido mudanças entre o texto proposto pelo Executivo e o aprovado pelo Parlamento, foram vetados R$ 4,97 milhões da política indigenista a ser executada pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Os cortes referem-se a duas ações orçamentárias: i) a 21BO, “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas” – ação guarda-chuva que engloba diversas políticas como as de preservação cultural e as referentes a licenciamento ambiental em Terras Indígenas – da qual foram vetados R$ 658 mil e a ii) a 155L, Aprimoramento da Infraestrutura da Fundação Nacional do Índio – especificamente destinada para melhoria e manutenção do órgão – da qual foram vetados  R$ 4,3 milhões.

O orçamento do órgão indigenista aprovado pelo Parlamento já se mostrava insuficiente e os vetos contribuem para o agravamento do esgarçamento da política. Chama especial atenção a retirada de recursos da infraestrutura do órgão, cuja precariedade foi ressaltada em nosso Relatório “Um país sufocado”. A retirada de recursos da ação 155L afasta ainda mais a possibilidade de realização de concurso para recomposição de quadro técnico da Funai em 2021, apesar da necessidade argumentada por Grupo de Trabalho do órgão em 2020.

*Livi Gerbase, Alessandra Cardoso, Cleo Manhas, Leila Saraiva e Luiza Pinheiro, assessoras políticas do Inesc

Orçamento escancara crise e desmonte da Educação

O novo coronavírus escancarou as desigualdades, ampliadas pela opção do governo federal em jogar com a vida das pessoas, ao não atuar como líder que deveria ser no combate ao vírus e suas consequências.   A começar pela má gestão do orçamento destinado para as ações de mitigação, que em 2020 tiveram recursos não gastos, apesar da necessidade brutal de auxílio emergencial, que ficou suspenso para ser retomado em patamares muito menores, em momento de aumento de inflação, que acometeu especialmente os produtos da cesta básica. É, a fome retornou com força, assim como a falta de acesso ao ensino/aprendizagem, afetando, principalmente, quem já sofre por falta de alimentação, saúde pública, educação pública.

É nítido que se não tivéssemos instituições públicas de pesquisa como o Instituto Butantan e a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) estaríamos ainda muito piores, pois sequer teríamos vacinado os 13% da população até aqui, já que a maior parte das doses vem desses dois centros produtores das vacinas Coronavac e AstraZeneca, em parceria com entidades da Inglaterra e da China. Somos bons nisso, o SUS sempre protagonizou grandes campanhas de vacinação, conseguimos erradicar várias doenças em território nacional com pesquisas aqui desenvolvidas.

No entanto, a Emenda do Teto dos gastos, 95 de 2016, em parceria com o atual governo negacionista e genocida, vem ao longo dos últimos anos reduzindo drasticamente os recursos para o ensino superior e para a pesquisa. Quando da votação da emenda, foi reforçado que educação e saúde não seriam afetadas, no entanto, a história é outra, pois mesmo que a arrecadação seja ampliada, os recursos para a educação, congelados em 2017, terão atualização apenas pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), ou seja, é possível que ao final dos 20 anos de vigência do teto dos gastos, o mínimo de 18% da cesta de impostos esteja em patamares bem menores, de acordo com artigo “Austeridade Fiscal e Financiamento da Educação no Brasil”, o que justificou que esta regra fiscal tenha sido concretizada por meio de emenda à Constituição, porque afeta os mínimos para educação e saúde que são dispositivos constitucionais. Somos vítimas de uma guerra de narrativas fictícias, que convencem incautos.

Sobre pesquisa, conforme divulgado no  Balanço do Orçamento Geral da União  ̶  elaborado pelo Inesc  ̶  , para a Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal (Capes), o autorizado entre 2019 e 2020 caiu de R$ 4,6 bilhões para R$ 3,7 bilhões. E, além disso, o pago no ano foi R$ 3,1 bilhões, que significam menos da metade do que foi executado em 2016 (R$ 6,7 bilhões), ano de baixa arrecadação. Como se vê, há um total descaso com a pesquisa, constatado cotidianamente pelos pronunciamentos do governo, que nega a ciência.

Com relação à educação básica, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD COVID19, do IBGE, cerca de 6,5 milhões de estudantes entre 6 e 17 anos ficaram distantes do aprendizado desde o início da pandemia, somando os que não se matricularam em 2020 (1,4 milhão) com aqueles que, mesmo matriculados, não tiveram acesso ao ensino (5,5 milhões). O que equivale a cerca de 15% da população de crianças e adolescentes na citada faixa etária.

Orçamento 2021

A situação é gravíssima e não é possível ver a luz no final do túnel, até porque, para 2021, duas regras fiscais recaíram como bombas para a política pública. Em razão da regra de ouro, ficou para ser aprovado em crédito suplementar, cerca de R$ 55 bilhões para a educação. E do que foi aprovado, parte foi bloqueado devido ao teto de gastos. Houve um bloqueio geral de R$ 9,2 bilhões, dos quais R$ 2,7 bilhões apenas na educação, ou seja, a maior parte do bolo, ou cerca de 30% do total

Com relação à pesquisa, o orçamento aprovado (inicial) para Capes caiu ainda mais, desta vez pela metade do que foi aprovado para 2020, agora serão R$ 1,9 bilhão, contra os R$ 3,8 bilhões de 2020, que já foram R$ 7,3 bilhões em 2016, ou seja, ladeira abaixo. Não há bolsas de iniciação científica, mestrado ou doutorado, a crise é gigante para um país que vinha percorrendo um caminho virtuoso no que diz respeito a inclusão no ensino superior.

E por falar em ensino superior, etapa de ensino cujo responsável é o governo federal, de 2016 para 2021, o orçamento aprovado já caiu R$ 8 bilhões – o que significa menos vagas nas universidades e institutos públicos, menos pesquisa, menos inclusão.

Volta às aulas sem recursos?

Mesmo com todos esses cortes para a educação, a Câmara dos Deputados achou prudente aprovar o Projeto de Lei 5595/2020, que obriga a volta às aulas presenciais, que segue para apreciação do Senado. Uma enorme contradição, visto que a ação orçamentária da educação com um dos maiores cortes orçamentários na LOA 2021, de acordo com a nota informativa da Consultoria de Orçamento do Congresso Nacional, foi “Apoio à Infraestrutura da Educação Básica, que tem como descrição, “Apoio técnico, material e financeiro para construção, ampliação, reforma e adequação de espaços escolares e para aquisição de mobiliário e equipamentos para todas as etapas e modalidades da educação básica. Apoio à infraestrutura e ao uso pedagógico das tecnologias de informação e comunicação para todas as etapas e modalidades da educação básica com o objetivo de melhorar o processo de ensino-aprendizagem”, de acordo com o Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP). Ou seja, os recursos necessários para garantir escolas seguras, ou mais equipamentos para educação remota.

Portanto, temos de nos mobilizar para impedir que o projeto seja aprovado. Chega de política genocida, precisamos de mais recursos orçamentários, vacinas e distanciamento social que garantam a educação de crianças, adolescentes e jovens, e a vida de todas as pessoas.

Orçamento 2021: entre erros, chantagens e falta de recursos para enfrentar a pandemia

Após quatro meses de atraso, finalmente temos um orçamento aprovado para 2021. A disputa pelos recursos públicos tomou contornos dramáticos, porém, mais uma vez, as regras fiscais ficaram acima das necessidades da população. Estamos em finais de abril de 2021 com dois orçamentos concomitantes, ambos muito aquém do necessário para enfrentar as consequências das crises sanitária, econômica e social que afetam profundamente o Brasil.

De um lado, a  Lei Orçamentária Anual (LOA 2021) que, além de ameaçar um apagão geral da máquina pública por insuficiência de recursos, apresenta cortes expressivos nas políticas sociais. De outro, um orçamento paralelo de enfrentamento da pandemia, estimado em R$ 100 bilhões, mais de seis vezes menor do que o aprovado no ano passado, apesar do crescimento contínuo da mortalidade decorrente do Sars-CoV-2, da fome, da pobreza e do desemprego.

Mas como chegamos até aqui? O Inesc preparou uma linha do tempo das principais decisões orçamentárias dos últimos meses.

Preâmbulo: é importante entender que o orçamento brasileiro é amarrado por regras fiscais que o impedem de realizar progressivamente direitos ou de responder a crises, como a provocada pelo novo coronavírus. Trata-se, principalmente, do Teto de Gastos, que congelou as despesas federais por 20 anos, até 2026, e da Lei de Resultado Primário, que estima anualmente quanto deve ser a relação receita-despesa, levando a cortes bimestrais quando as receitas estão abaixo do estimado. Em suma, não é possível aumentar gastos e, além disso, as despesas podem ser cortadas se há queda de receita – como quando uma crise econômica diminui a arrecadação.

O Estado de Calamidade Pública neutraliza as regras fiscais

Março a maio de 2020: foi declarado Estado de Calamidade Nacional como resposta à pandemia da Covid-19 e criado um Orçamento de Guerra. Estes instrumentos autorizam o Executivo a não cumprir a Lei de Resultado Primário, nem o Teto de Gastos e, consequentemente, a criar despesas para além do estimado na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2020. No total, foram autorizados R$ R$ 604,7 bilhões para um conjunto de medidas, como transferências a estados e municípios e apoio à saúde. Ao longo do ano, R$ 524,0 bilhões foram de fato gastos (ver Tabela 1). A principal ação a receber recursos foi a do Auxílio Emergencial, aprovada dia 30 de março pelo Congresso Nacional, fruto da mobilização da oposição e da sociedade civil. Para mais informações, veja o relatório do Inesc com o Balanço do Orçamento Geral da União de 2020 aqui.

Regras fiscais acima de tudo: o governo federal decreta o fim da pandemia

Abril de 2020: foi enviada a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2021 pelo Executivo ao Congresso Nacional. A LDO é a base para a LOA e deve ter, como seu nome diz, as diretrizes para a elaboração da lei orçamentária. Ela apontou que o governo não incluiria no orçamento o combate à pandemia como previsto pelo Inesc nesta análise.

Agosto de 2020: o Executivo encaminhou ao Legislativo a proposta de LOA para 2021 com erros, pois algumas despesas obrigatórias estavam subestimadas. O documento, seguindo o proposto pela LDO, mantém as regras fiscais e, para assegurar seu cumprimento, não destina recursos para a pandemia e apresenta expressivos cortes em gastos sociais. O Teto de Gastos passaria a ser a “âncora fiscal” do orçamento. O Inesc analisou a proposta aqui.

Atraso na aprovação do orçamento na compra de vacinas

Apesar da importância de discutir o orçamento para 2021, e de legalmente o Congresso Nacional ser obrigado a votar a LDO até 17 de julho e a LOA até 31 de dezembro de cada ano, isto não ocorreu:

Dezembro de 2020: o Congresso Nacional aprovou a LDO. Apesar de ela não conter qualquer espaço no orçamento para o combate à pandemia, ela impedia o congelamento de recursos para a compra de vacinas contra o novo coronavírus. Mas este dispositivo foi vetado pelo Executivo quando da sanção da LDO, que ocorreu em janeiro de 2021.

Dezembro de 2020: apesar do agravamento da crise sanitária, o governo não postergou o Estado de Calamidade ou o Orçamento de Guerra para 2021, impedindo que se continuasse com o afrouxamento de regras fiscais. Tal situação gerou automaticamente um problema, pois seria necessário criar novas formas de disponibilizar recursos extra orçamentários para enfrentar a crise. Por outro lado, foram autorizados, por meio de medidas provisórias, R$ 22,29 bilhões para a aquisição de vacinas, que começaram a serem gastos somente em 2021. Ou seja, em 2020, o governo não gastou recursos para a compra de imunizantes e ainda recusou um acordo proposto pela Pfizer que garantiria 70 milhões de vacinas ainda em dezembro.

Janeiro e fevereiro de 2021: em um cenário de aumento diário da mortalidade decorrente da Covid-19, o governo federal seguiu sem orçamento para a pandemia, priorizando pautas como a autonomia do Banco Central e a Reforma Administrativa. Contudo, houve autorização de R$ 2,8 bilhões à saúde por meio de Medida Provisória. Outras medidas se sucederam ao longo de março e abril de 2021, totalizando R$ 10,88 bilhões, como pode ser observado na Tabela 2.

Os puxadinhos e as chantagens

12 de março de 2021: é aprovada a Emenda Constitucional 109, conhecida como PEC Emergencial, que condicionou a aprovação de uma nova versão do Auxílio Emergencial à proibição de promoção funcional ou progressão de carreira de qualquer servidor ou empregado público. Ainda assim, os gastos com Auxílio Emergencial foram muito inferiores ao do ano anterior, caindo de R$ 322,00 bilhões para R$ 44,86 bilhões. Com a aprovação, o governo criou um crédito extraordinário para custear o Auxílio, cuja primeira parcela foi paga apenas em abril, com valores de R$ 150, R$ 250 ou R$ 375 – muito mais restritos que os de 2020, a despeito do agravamento da crise econômica, alta do preço dos alimentos e aumento do desemprego.

25 de março de 2021: após a aprovação da PEC Emergencial, a LOA finalmente entrou em discussão no Congresso e foi votada em 25 de março. O texto aprovado, porém, foi muito criticado por subestimar despesas obrigatórias e aumentar os recursos para emendas parlamentares. Desde 2020, estas emendas são em sua maioria de execução obrigatória – isto é, não podem ser cortadas pelo Executivo. Desta forma, o texto não poderia ser sancionado como estava, pois poderia causar uma paralisação da máquina pública, além de descumprir a meta de déficit primário estimada pela LDO e o Teto de Gastos, devido à subestimação das despesas obrigatórias.

Apesar desse aumento significativo de valores para emendas parlamentares, recursos para o enfrentamento à pandemia praticamente não foram adicionados pelos congressistas ao texto da LOA. Foi estimado apenas R$ 1,18 bilhão para apoio a ações de saúde, além de levar a outros cortes em gastos com a garantia de direitos, como analisou o Inesc.

Abril de 2021: crescem as tensões entre o governo federal e os parlamentares, pois ninguém queria assumir a responsabilidade pelo orçamento apresentado pelo Executivo e aprovado pelo Congresso Nacional. Para resolver o imbróglio, foi aprovado o Projeto de Lei do Congresso Nacional n° 2, que alterou a LDO para desobrigar o Estado a cumprir a Lei de Resultado Primário no que se refere aos recursos de combate à pandemia – o que poderia ter sido feito desde janeiro de 2021 com a prorrogação do Estado de Calamidade. Além disso, o PLN 02/2021 autorizou créditos extraordinários para medidas de enfrentamento à pandemia, como o Pronampe e o Benefício de Manutenção de Emprego e Renda. O governo promete R$ 5 bilhões para a primeira política e 10 bilhões para a segunda.

22 de abril de 2021: o Executivo sancionou a LOA 2021 com vetos – acordados com o Legislativo – para diminuir principalmente os valores destinados às emendas parlamentares. Entre os recursos vetados estão R$ 200 milhões que seriam utilizados para o desenvolvimento da vacina contra a Covid-19 no Brasil, além de cortes na saúde (veto de R$ 2,2 bilhões) e na educação (veto de R$ 1,1 bilhão e bloqueio de R$ 2,7 bilhões). O Censo corre risco de não ser realizado com os vetos de Bolsonaro. Ainda é possível que o Congresso Nacional reveja estes vetos.

Conclusões: temos um orçamento que não reflete a realidade e os recursos aprovados irão resultar na violação de direitos. As verbas para o enfrentamento da pandemia, além de insuficientes, seguem fora da LOA 2021, comprometendo sua transparência e monitoramento. Lamentável observar que nem o Executivo nem o Legislativo colocam como prioridade o enfrentamento à crise sanitária. O primeiro é obcecado pela manutenção das regras fiscais, ignora o sofrimento do povo e chantageia o Congresso. O segundo, para além da prioridade na responsabilidade fiscal, é preocupado com as eleições do ano que vem e está interessado nas emendas que poderão garantir votos.

Descaso com pandemia e direitos humanos marca orçamento federal de 2021

Artigo originalmente publicado no Congresso em Foco

 

Estamos passando pelo pior momento da pandemia no Brasil e não temos um orçamento para enfrentá-la. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2021 foi enviado pelo Executivo em agosto de 2020 e, após alterações feitas pelo Legislativo, foi aprovado no final de março, com três meses de atraso. Agora, o texto aguarda a sanção presidencial. Mas o que foi proposto é impraticável, pois subestimou os gastos obrigatórios para dar lugar a emendas parlamentares. Aprová-lo, portanto, significa possivelmente um crime de responsabilidade, o que está impedindo sua sanção pelo presidente da República.

Enquanto esperamos a resolução do imbróglio, milhares de pessoas estão diariamente perdendo suas vidas devido à covid-19 e milhões estão com fome. Em 2020, graças à pressão da sociedade, tivemos recursos volumosos para o enfrentamento da pandemia, ainda que com morosidade em sua execução e inexplicáveis saldos de recursos não utilizados em relação aos  valores autorizados – é o que apontamos no relatório “Um país sufocado – Balanço do Orçamento Geral da União 2020”, no qual também concluímos que várias políticas sociais e ambientais  tiveram, apesar da pandemia, seus recursos cortados.

Mas o que podemos dizer da Lei Orçamentária de 2021 aprovada pelo Congresso Nacional? Avaliamos neste artigo o orçamento previsto para o enfrentamento da pandemia e para as áreas de atuação do Inesc. Ainda que estes não sejam dados definitivos, pois o Executivo precisa sancionar a LOA e provavelmente vetará partes dela, já é possível fazer uma primeira estimativa da proposta para os gastos orçamentários de 2021.

Gastos para o enfrentamento da covid-19

Ano passado foram gastos R$ 524,0 bilhões para o enfrentamento da pandemia, para ações como auxílio emergencial, fortalecimento do sistema de saúde e apoio às empresas e aos estados e municípios. Esses gastos, porém, só foram possíveis devido à decretação de um estado de calamidade e à autorização de créditos extraordinários pelo Executivo, que criaram as condições fiscais necessárias para realizar gastos além do determinado na LOA aprovada no final de 2019.

O esperado seria, dado que estamos no segundo ano da pandemia, que o orçamento de 2021 refletisse o esforço orçamentário necessário para o enfrentamento da crise, que possui tanto um caráter econômico quanto sanitário e social. Entretanto, não foi isso que ocorreu: devido às regras fiscais vigentes, principalmente o teto de gastos, não foi possível adicionar ao texto da LOA recursos para o enfrentamento da pandemia e, novamente, vamos ficar nas mãos do Executivo e sua prerrogativa de criação de créditos extraordinários. O governo Bolsonaro já informou que não vai declarar o estado de calamidade e que o auxílio emergencial, única medida proposta para enfrentar a crise em 2021, será em valores muito inferiores aos R$ 600 de 2020: ele será pago em quatro parcelas, com valores de R$ 150, R$ 250 ou R$ 375, dependendo da família e limitado a um benefício por família.

Em resumo, não há recursos no orçamento de 2021 para o enfrentamento da pandemia. O único valor que aparece no texto da LOA aprovada pelo Congresso Nacional para combater a crise é de R$ 1,18 bilhão de recursos destinados à saúde. Para comparação, o valor gasto com o mesmo fim em 2020 foi de R$ 42 bilhões. Não há menção a outros programas de combate à crise, como o apoio a trabalhadores que perderem seus empregos ou tiveram suas jornadas de trabalho reduzidas.

Mesmo na saúde a situação não é muito positiva. Para além dos recursos específicos para a pandemia, em 2021 a área como um todo perdeu quase metade dos recursos autorizados no ano anterior, R$ 196,9 bilhões, e ficou um uma dotação inicial de R$ 136 bilhões. É como se a pandemia não tivesse se agravado neste ano, e não houvesse nenhum impacto de longo prazo.

Educação

O orçamento federal aprovado para 2021 está repleto de questões que precisarão ser resolvidas, ou inviabilizarão várias políticas públicas fundamentais. A Educação terá R$ 55 bilhões condicionados à aprovação do Congresso Nacional, porque afetam uma das regras fiscais, a regra de ouro, então, a responsabilidade ficará a cargo do Legislativo.

Para a função educação, que engloba todos os gastos para esta área no Executivo, foram autorizados R$ 113,8 bilhões para 2021. Quando comparamos com o aprovado em 2020, que foi R$ 116,6 bilhões, são R$ 3 bilhões a menos para uma área que vem perdendo recursos desde 2015 – em 2020, esta perda foi de ordem de R$ 7 bilhões.

Não é ocioso lembrar que, em 2016, ano de crise e de referência para a emenda do teto de gastos, o autorizado foi R$ 135,5 bilhões. Boa parte dos cortes está no ensino superior, inviabilizando atividades importantes em várias universidades federais. Para 2021 estão previstos R$ 33,7 bilhões, ou R$ 3 bilhões a menos que em 2020. A título de comparação, também com 2016, o autorizado para esta etapa de ensino foi de R$ 41,4 bilhões.

Direito à cidade

As três funções analisadas no orçamento de direito à cidade, urbanismo, habitação e saneamento tiveram altas em seus orçamentos. Ainda não temos como saber o porquê, mas como há várias ações com locais já predeterminados, podemos inferir que sejam fruto de emendas parlamentares. A maior alta se deu nos recursos para urbanismo, com aporte de mais R$ 3 bilhões em comparação com 2020,  onde há várias políticas para as cidades, dentre elas o transporte público urbano, que apesar de estar em profunda crise em várias cidades, teve recursos extras vetados pelo presidente e o que está previsto para esta ação é menor que em 2020. E a maior parte vai para infraestrutura e não para apoiar os sistemas de transporte público urbano.

Apesar do aumento dos recursos em urbanismo, para a subfunção transporte público urbano, os recursos que eram da ordem de R$ 545 milhões, em 2021 são R$ 494 milhões. Se já eram insuficientes, agora ainda mais, visto que o projeto de apoio aos sistemas de transporte vetado pelo presidente no final de 2020 previa um aporte de R$ 4 bilhões apenas para o custeio do sistema. E o que está previsto, que é 10% do que foi vetado, apenas uma pequena parte é para apoio ao serviço prestado. Estamos vendo diariamente a precariedade da oferta de transporte coletivo, cujos veículos viraram pesadelo para os trabalhadores e trabalhadoras que precisam circular e que não têm segurança alguma de que não se contaminarão, pois trafegam sempre com lotação máxima e sem fiscalização por parte do poder público.

Meio ambiente

O PLOA 2021 evidenciou, mais uma vez, a irresponsabilidade na condução da política ambiental. Para o ICMBio, cuja principal missão é fazer a gestão das Unidades de Conservação, o corte de R$ 119 milhões reduziu pela metade a capacidade de gasto do órgão. No Ibama, o governo propôs cortar em 2021 R$ 118 milhões para o órgão e as duas ações orçamentárias referentes ao combate ao desmatamento ilegal também sofreram pesados cortes na proposta do governo, perdendo R$ 49 milhões se comparado a 2019.

A despeito da campanha Floresta Sem Cortes e do trabalho do relator setorial do PLOA para o meio ambiente (deputado Nilto Tatto, PT-SP), no Congresso Nacional foram aumentados em apenas R$ 14,6 milhões estes valores, muito pouco perto do tamanho do corte que o Executivo propôs. O orçamento aprovado para o meio ambiente em 2021 torna, assim, inviável a própria existência do ICMBio e compromete severamente a fiscalização ambiental do Ibama.

Ao mesmo tempo, a ação do ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, junto ao relator e em articulação com parlamentares, multiplicou quase 18 vezes (de R$ 12,6 milhões em 2020 para R$ 244,74 milhões em 2021) os recursos para uma ação orçamentária do Ministério do Meio Ambiente denominada “Implementação de programas, planos e ações para melhoria da qualidade ambiental urbana – Aquisição de Máquinas, Equipamentos e Materiais Permanentes”. Com estes recursos, o governo pretende multiplicar pelo país, com concentração em São Paulo, usinas de geração de energia a partir de resíduos sólidos urbanos.

Crianças e adolescentes

O orçamento para crianças e adolescentes seguirá em 2021 priorizando o programa Criança Feliz, de acompanhamento de crianças de 0 a seis anos com o objetivo de promover desenvolvimento na primeira infância, que consumirá 98% de todos os recursos para a assistência à criança e o adolescente no ano. O programa, que ainda precisa ser avaliado em relação aos seus resultados, deverá ter um aumento de seus recursos em 7,1% em 2021 comparados ao valor autorizado em 2020.

Enquanto isso, em 2020 os recursos para a educação infantil foram quase três vezes menores quando comparados com 2019, e vários programas da área como o enfrentamento do trabalho infantil ou a educação de jovens e adultos (EJA) tiveram seus orçamentos drasticamente reduzidos. Para 2021, o orçamento aprovado pelo Congresso Nacional prevê a reestruturação do orçamento para a educação infantil, com aumento de 66,1% nos seus recursos – ainda que, quando comparamos com o executado em 2019, o valor é 30,8% inferior, o que sinaliza que os recursos para esta política continuam em processo de queda. A EJA segue sem recursos autorizados suficientes para seu funcionamento adequado – como mostramos em nosso relatório, ele se mantém na sobrevida nos últimos anos, apenas com pagamentos relacionados a anos anteriores.

Igualdade racial e quilombolas

Na ação Promoção e Defesa de Direitos para Todos, de execução do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), estão previstos R$ 2,5 milhões espalhados principalmente em quatro políticas: ações de promoção da igualdade racial e promoção dos direitos de matriz africana (R$1,4 milhões); igualdade racial no estado de Sergipe (R$ 800 mil); povos e comunidades tradicionais – nacional (R$ 100 mil), e povos e comunidades tradicionais no Rio Grande do Norte (R$ 200 mil).

Em relação aos quilombolas, alguns programas e ações tiveram seus recursos aumentados pelo Congresso Nacional. Para saneamento básico em comunidades quilombolas, estão previstos R$ 160,4 milhões –  no PLOA 2021 proposto pelo Executivo a previsão era de R$ 80 milhões. Para a distribuição de alimentos a grupos populacionais tradicionais e específicos, de R$ 18,6 milhões saltou para R$ 100,3 milhões com as emendas parlamentares. Esta política executou R$ 12,5 milhões em 2020.

A Fundação Palmares, porém, segue em um cenário desesperador de redução de recursos. Para ela foram destinados apenas R$ 1,4 milhão, na proposta do Executivo estavam previstos R$2,7 milhões.

Mulheres

Os recursos para garantir direitos humanos no orçamento do governo Bolsonaro foram, em sua maior parte, aglutinados em um só programa orçamentário Programa 5034: Proteção da Vida, Fortalecimento da Família e Diretos Humanos, executado pelo MMFDH, que abriga políticas para diversos públicos: mulheres, população negra, idosos, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, indígenas e quilombolas. A LOA 2021 prevê R$ 336,2 milhões para este programa, R$204 milhões a mais que os R$132,3 milhões previstos no PLOA 2021. Em 2020, este programa teve R$ 416,1 milhões na LOA 2020, e após os créditos extraordinários decorrentes da pandemia chegou a R$ 599,7 milhões autorizados (dados corrigidos pela inflação, acesso em abril de 2021). Ou seja, o recurso para 2021 é 19,2% inferior ao inicialmente aprovado para 2020, e 43,9% menor que o recurso total autorizado ano passado.

É possível encontrar alguns recursos específicos para políticas para mulheres, que aumentaram devido às emendas adicionadas pelo Congresso Nacional. As ações de enfrentamento a violência contra a mulher receberam R$ 2,5 milhões e as Casas da Mulher Brasileira, que oferecem serviços de assistência às mulheres, tiveram R$ 28,9 milhões de recursos garantidos, um aumento de R$ 1 milhão se comparado com o valor apresentado pelo Executivo no PLOA.

Indígenas

Para a área indígena, não houve mudanças do texto enviado pelo Executivo para o aprovado pelo Parlamento. As projeções para a Funai parecem otimistas: para 2021 o órgão contará com cerca de R$ 11,5 milhões a mais do que no PLOA 2020. No entanto, boa parte desses recursos está sujeita à aprovação legislativa: dos R$ 648,5 milhões atribuídos para a Funai em 2021, R$ 338,5 milhões estão sujeitos à aprovação do Congresso. Além disso, o acréscimo orçamentário previsto para o ano que vem está longe de ser suficiente para recuperar a esgarçada estrutura do órgão. O valor, por exemplo, está muito distante dos R$ 870 milhões atribuídos à Fundação em 2013.

No que tange à Saúde Indígena, a LOA 2021 atribuiu R$ 67,9 milhões a mais para a principal ação orçamentária da área, totalizando R$ 1,4 bilhão, algo muito positivo dado o elevado número de mortes indígenas devido ao novo coronavírus em 2020. É possível que tal aumento seja resultado das mobilizações dos movimentos sociais junto ao STF por ações mais efetivas no enfrentamento ao novo coronavírus nos territórios indígenas. De qualquer forma, é necessário monitorar os gastos para que os recursos cheguem à ponta, pois houve lentidão orçamentária ano passado: em 2020 chegamos em setembro com apenas 62% de execução orçamentária.

* Livi Gerbase, Nathalie Beghin, Carmela Zigoni, Alessandra Cardoso, Cleo Manhas, Thallita de Oliveira, Leila Saraiva e Luiza Pinheiro, integrantes da equipe do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

O recrudescimento da pandemia e a polêmica volta às aulas

Vários estados brasileiros começaram a se preparar para o retorno ou já estão em aulas presenciais em 2021, visto que as redes públicas nos estados e municípios, em maioria, estão com aulas presenciais suspensas desde março de 2020. No entanto, as curvas de contágio e morte que vinham caindo, voltaram a subir, em alguns lugares de forma assustadora. Quase todos os estados estão com hospitais lotados e com filas de espera. E isso ocorreu após relaxamento nos cuidados preventivos para evitar contágio na retomada de aulas presenciais.

Amazonas e Pará retomaram aulas em agosto e setembro de 2020 e, conforme anunciado, foi no mesmo Amazonas que o contágio e a letalidade aumentaram, se espalhando em seguida por todo o Brasil. Na Bahia há uma disputa entre judiciário, que quer voltar as aulas até março, e o executivo, que ainda tenta adiar o retorno. Em Maceió, escolas da rede privada retomaram aulas presenciais em janeiro, mas já em fevereiro tiveram de fechar várias por casos suspeitos de contaminação.  Piauí aprovou o retorno em setembro, mas em janeiro aprovou sistema híbrido.

Na região Centro-Oeste, as redes pública e privada de Goiás retomaram de forma híbrida em janeiro. O estado, em fevereiro, estava com leitos 100% ocupados e tendo de fazer isolamento social mais rígido em várias regiões. No Distrito Federal as escolas privadas retomaram presencialmente em setembro de 2020, com adesão de no máximo 30% dos estudantes. As públicas ainda estão em sistema remoto apesar da forte pressão, com resistência por parte de professores principalmente.

Em São Paulo, o retorno seria no início de março e foi adiado para 1 de abril devido as altas de contágio e letalidade. No entanto, muitas atividades estão funcionando, mesmo que com toque de recolher, e certamente em duas semanas a questão não se resolverá. Todos os estados do sul estão com capacidade máxima e filas de espera por leitos para tratamento da Covid-19.

O que são de fato atividades essenciais em meio a uma pandemia?

Estamos em um dos momentos mais críticos da pandemia, com filas de espera em todas as redes públicas de saúde de estados e municípios. No entanto, as medidas de isolamento não estão sendo eficazes, pois são confusas e parciais, deixando muita gente em circulação, não ajudando a abaixar as curvas de contágio e letalidade. Então, os setores obrigados a parar ficam revoltados, pois nem todas as áreas se submetem ao lockdown e, portanto, não resolve, apenas satura os que precisam parar.

“Atividades essenciais” é um termo que ficou esvaziado, já que varia de local para local. Em Brasília, por exemplo, academias para prática de esporte podem ficar abertas, escolas privadas estão funcionando, escolas públicas apenas em modo remoto. Daí tantos questionamentos, pois há uma confusão de prioridades, movida por interesses econômicos e pressão de empresários contra o que preconiza a saúde pública.

Surgem, então, muitas narrativas conflitantes. Por exemplo, sobre professores da rede pública não quererem trabalhar, como se não o fizessem no ensino remoto. Fazem até com mais dificuldades, pois para muitas (os) a utilização de plataformas de ensino está fora da prática cotidiana ou do que fizeram ao longo da vida em sala de aula.

Retorno às aulas presenciais significa 25% da população brasileira em circulação

Há vários casos de profissionais da educação e mesmo estudantes que foram contaminados pelo novo Coronavírus após retorno das atividades presenciais. Até mesmo casos de óbito em decorrência do contágio. Para se ter uma ideia do que significa o retorno total às aulas presenciais em todos os níveis e em todos os municípios, de acordo com o Censo Escolar da Educação Básica MEC/Inep, 2020, o Brasil tem apenas na educação básica (da infantil ao ensino médio normal e técnico) 45 milhões de estudantes. Sem contar o ensino superior que acrescenta mais 8,6 milhões, totalizando 53,6 milhões de pessoas. Somando as professoras e professores nesta conta temos mais 2,6 milhões. Então, se todos os sistemas de ensino no país funcionarem de forma presencial, serão cerca de 56 milhões de pessoas circulando, ou 25% da população.

Ensino Híbrido e possibilidade de inovação

Sabe-se, ainda, que as propostas de retorno híbrido especialmente para as escolas públicas, que não têm infraestrutura para receber todos os estudantes, não resolverá as enormes lacunas sedimentadas durante esse um ano em que convivemos com a pandemia. As professoras e os professores que terão que dar conta do ensino presencial e remoto são os mesmos. O revezamento para acesso ao presencial faz com que estudantes frequentem a escola em espaços muito grandes de tempo e o restante por ensino remoto. O modelo não ajudará a reduzir desigualdades existentes dentro das próprias escolas públicas, com assimetrias de acesso; e principalmente entre redes pública e privada.

Estamos fazendo o primeiro aniversário da convivência com o novo coronavírus sem, no entanto, pensar e propor novas formas de ensino/aprendizagem. Mesmo diante dessa enorme adversidade, as caixinhas continuam as mesmas, o máximo que fizeram, tanto rede pública quanto privada, foi transpor para plataformas virtuais o modelo de educação bancária criticada por Paulo Freire desde a década de 1970.

Estamos presos em modelos retrógrados, com dificuldades de repensar as salas de aula, conectados com Bases Nacionais Comuns Curriculares que se prendem ao conteudismo, a despeito da criatividade. E que neste momento ainda convivem com propostas fundamentalistas, criacionistas, ligadas à escola sem partido.

Paulo Freire tem sido atacado por todos os lados, mesmo sendo o intelectual brasileiro mais citado e respeitados em universidades mundo afora. Talvez porque em seus escritos e a partir de sua experiência é possível vermos luz no fim do túnel da ignorância. Por que não nos inspirarmos na educação popular para propor novas formas de interação mesmo que à distância? Menos opressão de conteúdos descontextualizados e mais história de gente? Maior conexão com o que estamos vivendo aqui e agora, estimulando pesquisa e criatividade por parte dos estudantes? Autonomia é a grande saída para esse imbróglio de desigualdades que estamos vivenciando. Há vida inteligente mesmo que de forma remota, basta abrirmos nossas mentes para o novo, não tão novo assim, diria Freire.

O Auxílio Emergencial faz diferença na vida das mulheres

As mulheres negras são as mais afetadas pelas consequências da pandemia da Covid-19 no Brasil. Contudo, o Auxilio Emergencial – conquistado após pressão da sociedade civil – foi um importante mecanismo de diminuição da pobreza e das desigualdades de gênero e raça. Sua interrupção voltou a penalizar as mulheres, em especial as negras, daí a urgência de retomar o programa, considerando a gravidade do momento.

A crise tem rosto de mulher

Raquel tem 28 anos. Tem quatro filhos, é parda e mora na periferia da capital federal. Com a pandemia, teve que lagar o emprego para cuidar das crianças, pois não tinha mais com quem deixá-las – uma vez que a escola e a creche fecharam em razão do necessário distanciamento social. Por ser mãe solteira foi beneficiada com o Auxílio Emergencial no valor de R$ 1.200, o que corresponde a dois benefícios. “Foi o que nos salvou”, disse-me ela, “com esses recursos, pude dar de comer para meus filhos e, também, comprar remédios, pois um deles tem bronquite, e comprar créditos para o celular para que o menino possa assistir as aulas”.

Agora Raquel vive com o Bolsa Família, com pouco mais de quatrocentos reais mensais. Se não fosse o apoio da rede de solidariedade que a circunda, não daria conta de fechar o mês, pois continua sem trabalhar porque os equipamentos públicos de educação permanecem fechados em decorrência da nova onda da Covid-19, que vem resultando em mais de mil mortes por dia.

A situação da Raquel é a expressão de milhões de mulheres no Brasil. A crise econômica, que se agravou com a crise sanitária em 2020, tem rosto de mulher.

Com efeito, as mulheres vinham perdendo mais com o baixo crescimento econômico em tempos recentes, pois apresentavam uma taxa de desocupação, em 2019, 4 pontos percentuais acima da masculina, algo em torno de 14%. Em relação à informalidade, homens e mulheres eram penalizados de forma similar, segundo dados da Pnad Contínua, mas por um longo período as mulheres foram maioria nas relações de trabalho precarizadas. Também permaneceu o diferencial de renda por gênero: o rendimento das mulheres foi em média 77% do masculino em 2019[1].

Com a pandemia, a desigualdade de gênero se agravou. Em primeiro lugar, porque as mulheres são maioria no setor de serviços, especialmente na saúde, educação, limpeza e comércio essencial, estando assim na linha de frente e mais suscetíveis ao vírus. Também são maioria nos serviços não essenciais como cabeleireiras, podólogas e manicures, sofrendo mais com o desemprego ou falta de clientes.

Em segundo lugar, porque a paralisação de aulas presenciais provocou um substantivo aumento na demanda de trabalho doméstico voltado aos cuidados (limpeza da casa, preparo das refeições, cuidados dos filhos e idosos, acompanhamento da educação “virtual” das crianças, entre outros), que foi em grande parte absorvido pelas mulheres.

E mais: o Brasil apresenta a maior mortalidade por Covid-19 entre gestantes e puérperas do mundo, com 77% dos casos mundiais de mortes neste grupo, o que demonstra as fragilidades do nosso sistema de saúde nessa área.

Como se não bastasse, as dificuldades econômicas provocam aumento da violência doméstica, com possível aumento da subnotificação. As vítimas estão em casa sob controle dos abusadores, enquanto os sistemas públicos de apoio às vítimas – que já vinham sofrendo cortes orçamentários em função das medidas de austeridade – são prejudicados pela crise.

As desigualdades raciais se acirram

A situação é ainda mais grave para as mulheres negras. Com efeito, entre 2014 e 2019, a taxa de informalidade das negras e brancas elevou-se de maneira geral, mas o patamar foi bem distinto segundo a raça/cor: para as negras, em 2019, a taxa foi de quase 45%, enquanto para as brancas foi de 32%. Também, em 2019, observaram-se significativas diferenças de taxa de subutilização da força de trabalho por raça/cor: para mulheres brancas este índice ficou em 22%, para mulheres negras ele foi de 34%. Em outras palavras, as negras entraram na pandemia em pior situação.

No que se refere à mortalidade entre gestantes e puérperas, a taxa entre brancas foi de quatro pontos percentuais abaixo da taxa do grupo que engloba todas as outras raças, essencialmente mulheres negras.

A importância do Auxílio Emergencial

O Auxílio Emergencial foi um poderoso mecanismo de alívio da fome em meio à crise econômica que se seguiu à crise sanitária provocada pelo alastramento do Sars-Cov-2. Dados produzidos pelo Ibre/FGV, a partir da Pnad-Covid, revelam que o benefício contribuiu para que a extrema pobreza no Brasil chegasse ao seu nível mais baixo da história recente, 2,3%, o que inclui as mulheres. Como a maior parte dos recursos do Auxílio se destinou a compras de alimentos, o impacto desse programa na fome foi inegável.

Os benefícios do Auxílio Emergencial não param por aí. O programa foi fundamental para diminuir as desigualdades de gênero e raça. Com efeito, estudo publicado pelo Made/USP mostra que no caso de domicílios chefiados por mulheres negras, o Auxilio Emergencial mais do que compensou a perda da renda do trabalho em decorrência da Covid-19. E mais: antes da pandemia, a renda per capita dos domicílios chefiados por homens brancos era 2,5 vezes superior à renda per capita dos lares chefiados por mulheres negras. Com o Auxílio Emergencial, essa razão caiu para 2.

 

[1] A esse respeito, ver “Austeridade, pandemia e gênero” de Ana Luíza Matos de Oliveira, Luana Passos, Ana Paula Guidolin, Arthur Welle e Luiza Nassif Pires. In “Economia Pós-Pandemia – Desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico”, coordenado por Pedro Rossi, Esther Dwek e Ana Luíza Matos de Oliveria, disponível na página: https://pedrorossi.org/wp-content/uploads/2020/11/Economia-Po%CC%81s-Pandemia-compactado.pdf

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