O ovo da serpente

01/01/1970, às 0:00 | Tempo estimado de leitura: 5 min
Por Atila Roque - Colegiado de Gestão do Inesc

O ovo da serpente

ATILA ROQUE

O bárbaro episódio protagonizado no Rio de Janeiro pelos criminosos fardados do Exército é um sinal de que ultrapassamos o fundo do poço e nos aproximamos perigosamente das profundezas do horror totalitário.

Não vamos fingir que se trata de um episódio isolado. A responsabilidade é do Estado e da sociedade que tem sido leniente e tolerante com a brutalidade sistemática exercida pelos que deveriam ser os guardiões dos direitos dos cidadãos. É preciso uma intervenção radical, um movimento cívico que rompa com a inércia e o silêncio cúmplice que deixa as populações das periferias pobres e das favelas à mercê da barbárie executada pelo tráfico, pelas milícias, pela polícia e agora pelo Exército.

Estamos vendo o crime penetrar todas as esferas do Estado. As últimas notícias mostram que, no Rio de Janeiro, ex-governadores, ex-chefes de polícia, deputados e autoridades públicas deram as mãos ao crime organizado para ampliar o poder e a riqueza. As instituições vão aos poucos sendo corrompidas e manietadas, ferindo gravemente o estado de direito e a democracia.

Da mesma forma estamos vendo a banalização do extermínio puro e simples de jovens pobres, em supostos confrontos com uma polícia ineficiente, mal treinada e mal paga, que parece ter tomado gosto pela matança. Com o aplauso entusiasmado de uma classe média acuada pelo medo, que prefere a “limpeza” da cidade a qualquer preço do que enfrentar o desafio maior de reestruturar o sistema de segurança pública e garantir direitos iguais a todas as pessoas. Nunca é demais lembrar que as sementes do totalitarismo e do fascismo historicamente se alimentaram do medo e do silêncio.

O absurdo e a violência desse episódio humilham o Estado e lança uma mancha sobre o Exército que dificilmente será apagado com pedidos de desculpas formais, ainda que necessários e imprescindíveis.

A ausência de autoridades públicas no enterro dos jovens e as declarações quase protocolares do governador e do presidente não correspondem à gravidade do episódio.

A sociedade carioca também deve se perguntar a razão pela qual tragédias como essas não provocam uma onda de indignação, um grito coletivo de basta que coloque um ponto final na verdadeira política de extermínio que tem sido posta em prática no Rio de Janeiro, com um custo alto de vidas de jovens, em sua maioria negros e pobres. Por que as únicas manifestações públicas de dor e revolta são as das próprias comunidades violentadas? Acho que já passamos da hora de formar uma aliança acima dos interesses particulares, partidários ou econômicos, que coloque como prioridade absoluta uma política de segurança pública e de desenvolvimento social que pense a juventude excluída não como problema ou ameaça, mas como parte essencial do nosso futuro como sociedade.

Por que não podemos reunir novamente o que temos de melhor? Ou será que perdemos totalmente a capacidade de indignação e vamos seguir recolhidos em nossos bunkers urbanos enquanto os cães de guerra espalham sem limites a selvageria?

 

Atila Roque é historiador e Diretor do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos)

Categoria: Artigo
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