“Professores são heróis que salvam sonhos. Eu tive o meu herói e quero ser a heroína dos meus alunos”

10/10/2017, às 14:05 (atualizado em 09/03/2023, às 18:23) | Tempo estimado de leitura: 7 min
Ravena Carmo, 27 anos, já cumpriu medida socioeducativa no Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje) e hoje retorna às unidades como educadora do Projeto Vozes da Cidadania.

Conheça

Ravena Carmo, 27 anos, Planaltina (DF)

Professores são heróis que salvam sonhos. Eu tive o meu herói e quero ser a heroína dos meus alunos. Meu nome é Ravena Carmo, tenho 27 anos e moro em Planaltina, DF. Passei dois anos e 11 meses como interna do Centro de Apoio Juvenil Especializado, o Caje. Hoje sou mãe de um garoto de seis anos, aluna de Ciências Naturais da Universidade de Brasília (UnB) e voltei à unidade de internação. Agora para levar cultura e educação para os jovens internos.

Comecei no mundo do tráfico aos 12 anos. Rolou, simplesmente aconteceu. O mundo do crime é algo fascinante: adrenalina, drogas, dinheiro. Era tão natural ter aquilo perto de mim… Mas é, também, uma teia de aranha: você nem percebe que entrou e não consegue mais sair. Roubar mesmo eu roubei uma vez só na minha vida. No entanto, como eu entrei de verdade no mundo do crime, acabei tendo que passar por todas as medidas socioeducativas que existem. Levei desde advertência até a pior de todas, que foi a internação.

Fui encaminhada à antiga Unidade de Internação do Plano Piloto (Uipp), conhecida como Centro de Apoio Juvenil Especializado (ou Caje), mais de uma vez. Um dia, saí de casa com uma arma para cobrar dívidas de drogas de uma mulher e atirei nela. Na mesma hora eu percebi o que tinha feito: havia extrapolado todos os limites das minhas atitudes. Ela sobreviveu, mas eu acabei na minha última e mais traumática internação. O lugar era uma máquina de fazer bandido. O cheiro é algo que está cravado na minha memória. Um cheiro de cadeia, um ambiente muito hostil e sem esperança.

Lá dentro tive contato com psicólogos e professores. Um deles foi o meu herói: o professor Clayton Meiji Ito, que dava aulas de matemática misturadas com teatro dentro da unidade. Eu odiava matemática, mas adorava ir para as aulas dele. Foi ele que olhou para mim um dia e disse: eu acredito em você. Para mim, Meiji cumpriu o papel de um professor, que está além de simplesmente passar conhecimento: plantar uma semente de esperança dentro do coração dos alunos. Quando saí, para minha surpresa, ele me disse que ainda veria meu nome na UnB. Eu ria, porque não acreditava mesmo que poderia estar onde estou. Eu nem sabia o que era escola direito.

Quando saí do Caje, sabia que não queria voltar para Planaltina. Mas transformei a minha volta e a minha experiência em poesia: a minha quebrada virou a minha inspiração. Passei a compor para grupos de hip hop da cidade. Além disso, consegui um emprego em uma loja por indicação de um amigo. Acho fundamental que os adolescentes sejam acompanhados de perto e direcionados para novas oportunidades quando saem da internação. O sistema socioeducativo aqui de Brasília é muito falho. Não há suporte quando o adolescente sai da internação. Ele cumpre a medida, mas muitos não têm casa para morar, não têm onde dormir, não têm o que vestir e acabam voltando para o crime.

Só que eu queria mais. Pedi demissão e, com o dinheiro, me matriculei em um cursinho pré-vestibular. Fiz o primeiro vestibular e não passei. Foi frustrante? Foi! Eu poderia ter desistido? Sim. Mas falei: eu não aceito! Comecei a estudar por aulas avulsas no YouTube e passei em primeiro lugar no curso de ciências naturais da UnB.

A universidade não foi fácil. Tive outro choque de realidade quando entrei, porque escola regular eu só estudei até o quarto ano. Universidade era algo muito novo para mim. Chorava todos os dias no banheiro porque o professor começava a falar de tabela periódica e eu não entendia nada. Mas segui firme, tentando me adaptar, conhecendo pessoas e buscando descobrir qual era meu papel ali dentro.

Já no início do curso comecei a ministrar oficinas dentro de unidades de internação. Foi difícil entrar, minhas pernas tremiam, eu revivi tudo o que havia passado naqueles anos no Caje. Mas foi, também, uma experiência inesquecível entrar pela porta da frente sem ser revistada.

Decidi desenvolver meu TCC sobre essa experiência e quero me tornar doutora no assunto. A minha salvação foi a educação. E, quando falo isso, me refiro à educação e à cultura porque elas não se separam de forma alguma. Foi por isso que escolhi ser professora, acredito que tenho uma dívida com a educação. Quero repassar isso às adolescentes que estão presas e merecem ter uma nova chance na vida. Afinal, eu vivi a socioeducação, eu sou fruto da dela, e felizmente, encontrei pessoas no meu caminho que também acreditam.

Trabalhar com o Inesc fez muita diferença para mim porque, por mais que eu tivesse a vivência das coisas, não sabia exatamente como fazer, o que queria fazer. A parceria em oficinas com as adolescentes que cumprem medidas socioeducativas me ajuda tanto no nível pessoal como no profissional. Me prepara melhor para eu atuar nas áreas sociais, no sistema socioeducativo. Quero ser reconhecida como profissional, não apenas pela minha história de vida. E o Inesc me dá essa base.

O que mais aprendi com tudo o que vivi até hoje foi que a gente só precisa de um empurrão. Alguém que te diga: “Você dá conta”. Ter uma pessoa que acredita em você não é utopia, é algo verdadeiro porque aconteceu comigo. A força está nos jovens.

“Eu sou cada abandono

eu sou cada descaso

eu sou cada medo,

cada choro,

cada sorriso.

Eu sou as pessoas de bem,

Bom coração.

Eu sou favela, resistência, quebrada”

Ravena Carmo, 27 anos,  educadora do Projeto Vozes da Cidadania.

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