Circuito “Mulheres Amazônidas” chega à última edição

14/10/2020, às 17:43 (atualizado em 09/11/2020, às 17:11) | Tempo estimado de leitura: 9 min
Debates sobre superação de violências e solidariedade entre as mulheres do sudeste do Pará marcaram o fim da série de lives

A última live do circuito “Mulheres Amazônidas” trouxe para o público uma outra face do processo de reflexão coletivo: as formulações teóricas que caminharam lado a lado à escuta ativa das 15 participantes.

No quarto e último encontro, três das organizadoras do circuito foram para o centro do debate: Rose Bezerra, educadora e socióloga; Margarida Negreiros, socióloga e professora da Faculdade de Educação do Campo – UNIFESSPA; e Tatiana Oliveira, assessora política do Inesc. Além delas, a educadora e pesquisadora militante Joana Emmerick e Gracinha Donato, artista popular e militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), foram convidadas.

O diferencial desse processo de reflexão coletiva foi não apenas trazer as experiências de mulheres de diferentes territórios, mas também pensar a mineração, a pandemia, a política e a economia, a partir das dinâmicas do cotidiano, das questões subjetivas e dos afetos.

Como lembrou Rose Bezerra ao comentar os processos de remoção de famílias em função dos projetos de mineração que acompanhou por 11 anos: “nada daquilo que a gente definia era capaz de expressar a dimensão da violência daquele processo que estava em curso”. Portanto, para Rose, o circuito de lives abriu uma perspectiva que vai além de apenas complementar uma análise objetiva dos impactos da mineração e do agronegócio.

“A minha fala não é partindo de uma ideia complementar, mas de uma nova chave para entender essas outras dimensões dos impactos que, muitas das vezes, passam invisibilizadas e que acabam sendo extremamente violentas, considerando a sua sinergia na vida das mulheres”, pontuou Rose.

>>> Leia: Territórios camponeses frente à mineração: olhares sobre a questão fundiária

Do ecofeminismo ao corpo-território

“O circuito Mulheres Amazônidas começou com a intenção de trazer o ecofeminismo para a análise da realidade das mulheres paraenses, mas ao longo dos encontros, a noção de corpo-território passou a fazer mais sentido”, contou Tatiana Oliveira, assessora política do Inesc.

O conceito nasceu em um contexto do acirramento das lutas territoriais na América Latina e no Brasil e tem como um dos marcos o lema “nossos corpos, nossos territórios”, levado pelas mulheres da Guatemala em 2003 no Fórum Social das Américas, detalhou Joana Emerick, que estuda as várias apropriações latino-americanas da categoria.

Para ela, a ideia de corpo-território traz em seu cerne a vivência em comunidade, o espaço coletivo em que as mulheres são as principais responsáveis pela sua defesa. Na tentativa de protegê-los dos processos de privatização, essas mulheres estabelecem com os territórios uma relação de interdependência. “O que tem acontecido é um processo de perda territorial enorme e o principal território afetado foi o da existência política das mulheres, da existência coletiva”, explica Joana.

Na prática, essa relação pode ser observada no papel que muitas mulheres desempenham na garantia da alimentação, por exemplo. “Em um contexto onde a gente tem uma intensificação do monocultivo do gado e da mineração, a resistência das mulheres no sentido de produzir comida saudável é uma questão extremamente fundamental para garantir a permanência e a vida nesses territórios”, disse Rose.

O conceito de corpo-território também evoca a sobrevivência no seu sentido simbólico e ancestral. Margarida, resgatando as falas das companheiras das lives anteriores, aterrissa a discussão no contexto da mineração.

“A mineração significa a cerca, a fazenda que se estabelece ali. As mulheres tiveram que puxar a cerca com as duas mãos para que a cabeça, o machado e o cofo, que são os instrumentos que elas usam para extrair o babaçu, pudessem passar. Olha a agressividade que isso significou para elas! Antes não tinha cerca de arame farpado, elas tiveram que adentrar a cerca com esse corpo, corpo que procura formas de sobrevivência aprendidas com as avós e pais”.

>>> Leia: De que lado a corda arrebenta? Os recursos da mineração e a desigualdade em tempos de pandemia

Violências

O tema corpo e território também envolve a violência. Tatiana chamou a atenção para o fato de que, geralmente, quando se fala de mulheres e violência, as discussões são sobre violência doméstica. Por isso, as lives abarcaram a violência em suas múltiplas dimensões. “A gente veio discutindo as tramas econômico-financeiras da violência contra as mulheres, que é um slogan que vem aparecendo para falar da violência do Estado, da violência corporativa”, explicou.

Os efeitos que o desmonte da vida comunitária tem na precarização do trabalho das mulheres nos territórios foi tema da fala de Rose: “É um processo  violento que, ao fim, recai sobre a vida e os ombros dessas mulheres. Se a gente considera essa multiplicidade de papéis que as mulheres cumprem no tecido social e se esse tecido se esfacela e é desmontado, tudo acaba incidindo com mais força e com mais pressão sobre essas mulheres”.

Outra dimensão da violência discutida nas lives pelas mulheres do sudeste paraense foi a psíquica, ao recordarem os entes queridos assassinados nas lutas por seus territórios, as experiências de despejo e o barulho da ferrovia Carajás. “É acumulado de violências que são relatadas. Elas vão da possibilidade do acesso à água até respirar um ar limpo e saudável ou até a soberania alimentar, existe uma sensação de aprisionamento dentro dos territórios”, resumiu Tatiana.

Margarida ainda acrescentou a criminalização: “a estigmatização e a judicialização criam um pensamento social de negação nessas mulheres. Desqualificam suas formas de vida, seus territórios e suas maneiras de viver e de falar”.

>>> Leia: Mulheres amazônidas e a defesa dos territórios em tempos de Covid-19

Solidariedade e pertencimento

Falar em corpo-território também é reconhecer as relações de solidariedade que sustentam as comunidades, relações estas que por si só são um contraponto ao abismo visibilizado pela pandemia.

Tatiana resumiu bem essa questão ao colocar que “é impossível pensar a pandemia sem pensar a crise de reprodução social e dos cuidados que a gente vive hoje, tanto do ponto de vista da solidão dos sujeitos, como do jeito que a gente se organiza para viver em comunidade”.

Para ela, a limitação dos serviços públicos levou à exaustão generalizada, que traz a necessidade do afeto e do amor como amparo. “Para além de pensar o corpo conectado ao território, é também pensá-lo como primeiro território”, pontuou.

Neste sentido, as convidadas das lives marcaram ao longo dos debates a importância da solidariedade como estratégia de sobrevivência. O trabalho coletivo das quebradeiras de coco, realizado com muita cantoria, como homenageou Gracinha, talvez seja a imagem perfeita desta dimensão. “Penso na solidariedade, como algo que é forte entre as mulheres camponesas”, refletiu Margarida.

 

Categoria: Notícia
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