Anna Peliano e as políticas de alimentação e nutrição no Brasil

26/08/2021, às 16:13 | Tempo estimado de leitura: 18 min
Por Nathalie Beghin. Coordenadora da Assessoria Política do Inesc.

 

No Brasil, a história recente da política nacional de alimentação e nutrição se confunde com a de Anna Peliano, pesquisadora do Ipea, que dedicou boa parte de sua vida profissional a refletir sobre as causas da fome. Ela também foi personagem importante no desenho e na implementação de relevantes iniciativas federais na área.

As origens

Como ela gostava de lembrar, uma das principais referências, tanto no Brasil como no mundo, foi o pernambucano Josué de Castro que, de maneira inovadora para a época, mostrou que a fome era essencialmente um problema político. Ele caracterizou seu pensamento por romper com algumas falsas convicções que imperavam em seu período (e que ainda se fazem presentes nos dias atuais) de que a fome e a miséria do mundo eram resultantes do excesso populacional e da escassez de recursos naturais.

Em seus livros, provou que a questão da fome não se tratava do quantitativo de alimentos ou do número de habitantes, mas sim da má distribuição das riquezas, concentradas cada vez mais nas mãos de poucas pessoas. Por isso, acreditava que a problemática da fome não seria resolvida com a ampliação da produção de alimentos, mas com a distribuição não só dos recursos, como também da terra para os trabalhadores nela produzirem, tornando-se um ferrenho defensor da reforma agrária.

Josué de Castro também está na origem dos primeiros passos da política de alimentação e nutrição que foram dados no âmbito das políticas trabalhistas do governo Getúlio Vargas. Foi fundador e dirigente dos primeiros órgãos voltados para a questão alimentar. Em 1940 foi criado o Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps) com os objetivos de promover a instalação de refeitórios em empresas maiores, fornecer refeições nas menores, vender alimentos a preço de custo a trabalhadores com família numerosa, proporcionar educação alimentar, formar pessoal técnico especializado e apoiar pesquisas sobre alimentos e situação alimentar da população.

Cinco anos depois, foi instalada a Comissão Nacional de Alimentação (CNA), com funções de definir a política nacional de alimentação, estudar o estado de nutrição e os hábitos alimentares da população, acompanhar e estimular as pesquisas relativas às questões e problemas de alimentação, trabalhar pela correção de defeitos e deficiências da dieta brasileira estimulando e acompanhando campanhas educativas, e contribuir para o desenvolvimento da indústria de alimentos desidratados. Em janeiro de 1946 fundou-se o Instituto Nacional de Nutrição (INN).

Deste projeto ambicioso sobreviveu apenas a merenda escolar, sob o controle do Ministério da Educação a partir de 1955. Na época, a merenda recebia significativos apoios do Programa das Nações Unidas para Alimentação (PMA) e da USAid, que atuaram para introduzir alimentos formulados no programa.

Nos anos de 1950 e 1960 vários estudos e inquéritos revelaram a gravidade da situação alimentar no Brasil: todos apontavam para altos índices de desnutrição, com déficit calórico e proteico acompanhado de anemia e, ao menos em algumas regiões do Nordeste, hipovitaminose A. Paralelamente, um amplo estudo do Ministério da Saúde, em 1955, identificava o bócio endêmico como grave problema de saúde pública.

A institucionalização

Um fato novo ocorreu em 1972 quando foi criado o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (Inan), autarquia vinculada ao Ministério da Saúde com os objetivos de: assistir o governo na formulação da política nacional de alimentação e nutrição; elaborar o Programa Nacional de Alimentação e Nutrição (Pronan), promover e fiscalizar a sua execução e avaliar os resultados; e, estimular pesquisa científica.

É nesse momento que Anna Peliano entra em cena como jovem pesquisadora, participando da elaboração das duas edições do Pronan, entre 1973 e 1979. O programa definiu como público prioritário as gestantes, nutrizes e crianças até sete anos de idade na população de baixa renda e os escolares de sete a 14 anos.

O Pronan ofereceu o primeiro modelo de uma política nacional de alimentação e nutrição incluindo distribuição de cesta de alimentos in natura, amparo ao pequeno produtor rural por meio da aquisição de sua produção, combate às carências nutricionais específicas (anemia ferropriva, hipovitaminose A e bócio), promoção do aleitamento materno, alimentação do trabalhador e apoio à realização de pesquisas e capacitação de recursos humanos. Além da merenda, que passou a denominar-se Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), nos anos seguintes foram implantados, sob a égide do Pronan, 12 programas e ações de alimentação e nutrição[1] implementados por diversos ministérios e órgãos federais (i. e, Saúde, Trabalho, Educação, Agricultura e Legião Brasileira de Assistência – LBA).

Os fracassos

Como dizia Anna Peliano, “o que foi bom não funcionou e o que funcionou não foi bom”. Ainda que esses programas, juntos, mobilizaram recursos da ordem de US 1 bilhão em 1989 e que muitos deles possuíam desenho adequado, eles apresentavam diversos problemas, tais como: irregularidade no atendimento, baixas coberturas, distribuição de alimentos de má qualidade, distribuição de alimentos formulados caros e pouco aceitos pelos beneficiários, centralização da gestão em Brasilia, o que contribui para episódios de corrupção, e superposição de programas gerando desperdício de recursos, entre outros.

Em 1986 foi realizada a primeira Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, como desdobramento da famosa 8ª Conferência Nacional de Saúde, na qual se reivindica a participação social e a alimentação como direito de cidadania. Ali começa a se gestar para o Brasil a ideia de segurança alimentar e nutricional.

Diante das inúmeras dificuldades vivenciadas nos anos de 1970 e 1980, o Inan acaba sendo extinto em 1997. Os programas de combate às carências nutricionais específicas e de promoção do aleitamento materno foram absorvidos por áreas do Ministério da Saúde. O Pnae e o PAT se mantêm ativos até hoje. Os demais foram extintos ou reeditados anos depois.

As reviravoltas

Com a redemocratização do país e a fome resultante da década de 1980, chamada de “perdida”, a sociedade pressiona os poderes públicos por respostas. Em 1992, o Movimento da Ação da Cidadania contra a Fome, à Miséria e pela Vida mobiliza o Brasil inteiro e insta o presidente Itamar Franco a tomar medidas.

Anna Peliano entra novamente em cena. Como diretora do Ipea coordena a elaboração do Mapa da Fome, que identificou e localizou, por município, 32 milhões de pessoas passando fome. A convite de Itamar, organizou a elaboração do Plano Nacional de Combate à Fome e ajudou a criar, no âmbito da Presidência da República, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), integrado majoritariamente pela sociedade civil e presidido por representante da sociedade civil, na ocasião, o Bispo Dom Mauro Morelli. Anna Peliano assume como conselheira e, ao mesmo tempo, exerce o papel de secretária-executiva do Conselho com apoio da equipe do Ipea. Em 1993 foi realizada a 1ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar que contou com a presença do Presidente Itamar Franco e que reuniuem Brasília mais de mil representantes da sociedade civil e do governo.

Sob a égide do Consea foram desenhadas e implementadas diversas iniciativas, especialmente nas áreas de distribuição de alimentos e de fortalecimento do Pnae. Contudo, conforme constatou o próprio Ipea, no geral, essas iniciativas limitaram-se à esfera das políticas compensatórias. Tal constatação merece duas análises. A primeira, positiva, salienta que a distribuição de alimentos rompeu a inércia secular da sociedade brasileira diante do problema da fome e, paralelamente, permitiu dar uma resposta, ainda que parcial e de curtíssimo prazo, à falta de alimentação das populações empobrecidas.

A segunda leitura enfatiza o lado negativo dessa concentração em políticas compensatórias: não se utilizou a mobilização da sociedade civil e a influência lograda pelo Consea na ação governamental para a formulação de políticas que gerassem mudanças estruturais e que permitissem reduzir a necessidade de políticas compensatórias.

De todo modo, avaliou-se na época que a ação contra a fome tinha alcançado três grandes contribuições para tornar a sociedade brasileira mais democrática e justa: ter politizado o problema da fome; ter logrado uma mobilização da sociedade civil impar; e ter ampliado, por meio do Consea, a participação cidadã na formulação e controle das políticas públicas.

Com a eleição do Presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), o tema da fome sai da agenda pública e entra o da pobreza. A experiência do Consea foi insumo para a estratégia Comunidade Solidária. Anna Peliano foi convidada a ser secretária executiva do Comunidade Solidária, abrigado na Presidência da República com apoio do Ipea. A partir dos erros e acertos da implementação do Plano de Combate a Fome do Presidente Itamar, criou-se uma intervenção que, de forma inovadora para a época, buscou articular e coordenar ações – federais, estaduais e municipais – em territórios empobrecidos, a partir de um pacto federativo. Apostava-se que a convergência e a integração das ações contribuiriam para que aqueles territórios pudessem se desenvolver.

A avaliação externa da Comunidade Solidária revelou que nos municípios mais pobres onde atuou observaram-se avanços na convergência e integração intersetorial de programas, especialmente entre as áreas de alimentação, saúde e educação. É a essa integração que se creditou, em grande parte, uma queda expressiva das internações e dos óbitos de crianças menores de 5 anos por deficiências nutricionais, no período 1994/97.

É da também dessa época a elaboração da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) no âmbito do Ministério da Saúde. A PNAN foi sendo atualizada até recentemente.

Contudo, apesar dos avanços no combate à fome, à miséria e à pobreza, a década de 1990 se encerrou com a presença de várias das dificuldades tradicionais: falta de prioridade política, recursos insuficientes para garantir um atendimento adequado, ausência de uma política mais agressiva na área do abastecimento popular, falta de flexibilidade para atender as demandas das comunidades locais e de um efetivo controle e participação da sociedade. Assim, a Comunidade Solidária, no seu formato original, acabou sendo abandonada no segundo mandato de FHC.

Os anos 2000 e a alimentação como direito

Com a eleição do Presidente Lula em 2003, o tema da fome voltou com toda força para a agenda nacional. Foi recriado o Consea, lançado o Fome Zero e elaborados os Planos Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional, além de criado o Sistema Nacional de Alimentação e Nutrição ancorado num pacto federativo.

A pergunta recorrente à época era: qual a melhor forma de assegurar alimentação para as pessoas que passavam fome? A experiência com os programas de distribuição de alimentos nos ensinava que esse modus operandi não servia mais. O governo anterior tinha posto em marcha diversos programas de transferência de renda que também apresentavam problemas, pois tinham baixa cobertura, eram fragmentados e, em alguns casos, superpostos. Daí veio a ideia de promover a fusão e a expansão desses programas, foi quando nasceu o Bolsa Família. Anna Peliano também fez parte do grupo interministerial que, durante semanas, debateu qual seria o melhor formato desse novo programa. O Bolsa Família passou a ser carro-chefe do Fome Zero.

Outra iniciativa importante liderada pelo Conselho foi a criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), semelhante ao Procab dos anos de 1970. A proposta era, por um lado, assegurar mercado institucional para os agricultores familiares e, de outro, abastecer entidades sociais com alimentos in natura ou pouco processados.

A grande conquista dos anos 2000 foi a aprovação pelo Congresso Nacional, em 2010, de emenda constitucional que transformou a alimentação em direito social. O Consea teve papel decisivo nesse resultado que, havia anos, constituía-se em demanda de importantes setores da sociedade.

No primeiro mandato da presidenta Dilma, novamente a fome sai de cena e entra o tema da extrema pobreza. Assim, é lançado em 2012 o Brasil sem Miséria que se articulou em torno de três eixos: garantia de renda, para alívio imediato da situação de pobreza; acesso a serviços públicos, para melhorar as condições de educação, saúde e cidadania das famílias; inclusão produtiva, para aumentar as capacidades e as oportunidades de trabalho e geração de renda entre as famílias mais pobres do campo e da cidade.

O resultado desse acúmulo, que passou por altos e baixos, avanços e retrocessos, é que em 2014 o Brasil saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas. Finalmente, havia-se erradicado a fome no Brasil, ainda que permanece inaceitavelmente presente em populações específicas, como os povos indígenas, por exemplo.

O final não é feliz

Mas, num curto espaço de tempo, especialmente nos últimos três anos, o governo desfez quase tudo o que tinha sido construído até então. Ao abandono dos empobrecidos pelo Estado soma-se uma grave crise econômica que se arrasta há tempos e leva consigo milhões de pessoas que não conseguem se alimentar adequadamente. A situação só não é pior porque ainda sobrou o Bolsa Família que, contudo, também está sendo progressivamente dilapidado.

É nesse quadro de grandes retrocessos que Anna Peliano sai de cena nos deixando órfãos de experiência e de grandes ideias. O que podemos e devemos fazer em sua homenagem é lutar por um Brasil não somente livre da fome, mas alimentando seu povo adequadamente, com produtos pouco processados, oriundos da agricultura familiar e que respeitem a diversidade cultural da nossa população.

 

Anna Peliano faleceu no dia 19 de agosto de 2021. Por pelo menos 20 anos tive o privilégio de trabalhar, conviver e aprender com ela. Faz-me imensa falta.

 

[1] Ministério da Saúde/Inan: Programa de Suplementação Alimentar (PSA); Programa de Alimentos Básicos em Áreas de Baixa Renda (Proab); Programa de Racionalização da Produção de Alimentos Básicos (Procab); Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno (Pniam); Programa de Combate às Carências Nutricionais Específicas (Pccne); Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan); Ministério da Educação: Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae); Programa de Alimentação dos Irmãos dos Escolares (Paie); LBA: Programa de Complementação Alimentar (PCA); Ministério do Trabalho: Programas de Alimentação do Trabalhador (PAT); Presidência da República: Programa Nacional do Leite para as Crianças Carentes (Pnlcc); Ministério da Agricultura: Programa de Alimentação Popular (PAP).

*Os textos publicados no Blog do Inesc são de responsabilidade de suas autoras e não representam, necessariamente, a opinião desta instituição. 

Categoria: Blog
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