O Novo Banco de Desenvolvimento – o tiro saiu pela culatra?

07/10/2016, às 11:44 | Tempo estimado de leitura: 10 min
Artigo de Nathalie Beghin, coordenadora da Assessoria Política do Inesc, que é integrante da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip).

Entre os dias 12 e 14 de outubro de 2016, será realizada em Goa, Índia, a 8ª Cúpula do BRICS, bloco de países que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Por que uma organização não governamental como o Inesc, com sede em Brasília, poderia se interessar por essa reunião?

Por muitas razões, mas talvez a principal delas seja a defesa incondicional da radicalização da democracia e da promoção dos direitos humanos, no Brasil e alhures. E o que isso tem a ver com o BRICS?

Muito. O BRICS nos deu a impressão que o jogo poderia mudar no cenário internacional. O poder dos chamados países desenvolvidos é tamanho que são eles que ditam as regras na grande cena global. Um exemplo: os países do BRICS correspondem a 40% da população global e cerca de 23% do conjunto dos PIB das nações, mas só têm 11% dos votos do Fundo Monetário Internacional (FMI). Inconformados com tamanha assimetria, os governantes do Bloco atuaram por dentro do FMI para mudar o jogo, mas os americanos que mandam não toparam. Os governos do BRICS, que já vinham conversando informalmente há vários anos, se deram conta que juntos poderiam desafiar o status quo e tencionar as relações hegemônicas vigentes. O poder dos cinco países vem crescendo significativamente: se no começo do século 21 o BRICS representavam menos de 5% do PIB global, essa proporção mais do que quadruplicou em 15 anos. Já o G7 – os sete mais ricos do mundo – vem perdendo terreno: o grupo era responsável por dois terços do PIB global em 2000 e essa proporção caiu para cerca de 45% nos dias de hoje[2].

Diante desse quadro – poder crescente, mas destituído de voz – o BRICS resolveu no final da década passada se organizar de maneira mais estruturada, estabelecendo agenda de trabalho comum e reuniões anuais de chefes de Estado. Os encontros são rotativos, cada ano um dos países hospeda a Cúpula. Desde sua criação em 2009, o Brasil recebeu duas Cúpulas: a 2ª em Brasília, em 2010, e a 6ª em Fortaleza, em 2014. Apesar de existirem muitas assimetrias entre os países, em termos políticos, econômicos, sociais e culturais, há um desejo comum de ganhar autonomia em relação aos que vêm dando as ordens desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Uma das primeiras medidas concretas do Bloco foi a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD). Considerando as imensas necessidades de financiamento para o desenvolvimento dos países do Sul, estimadas em mais de um trilhão de dólares, e a crescente dificuldade do Banco Mundial e de outros bancos de desenvolvimento oriundos dos acordos de Bretton Woods de atender a essas demandas, o NBD se apresenta como alternativa de interesse dos países em desenvolvimento. A ideia foi lançada em Fortaleza em 2014, e o Banco criado em 2016. Os primeiros empréstimos no valor de pouco mais de 800 milhões de dólares foram aprovados para Brasil, Índia, China e África do Sul na área de energias renováveis.

A diferença em relação aos bancos de desenvolvimento existentes é que, neste caso, há igualdade nas decisões – cada país, um voto. E uma construção que acomoda todos os países: a sede é na China, a Presidência é da Índia, o Presidente do Conselho de Administração é brasileiro, o Presidente do Conselho de Governadores é russo e a África do Sul sedia o escritório regional do Banco.

A princípio deveríamos estar contentes, pois finalmente as vozes de Sul desafiaram os poderosos do Norte, contribuindo para alterar as desiguais relações de poder prevalecentes. Mas, não é bem assim. São inúmeros os desafios que o NBD traz. Não basta ser do Sul para ser bom. O Banco nasce com pouca transparência. Apesar de ter lançado em julho um documento intitulado Política Provisória de Divulgação de Informação (Interim Information Disclosure Policy)[3], que sem dúvida representa algum avanço, note-se que tal política, ainda que provisória, foi elaborada sem qualquer mecanismos de escuta dos povos e comunidades que serão afetados por suas ações. O site do Novo Banco de Desenvolvimento é lastimável[4], não diz nada. Não se sabe quais projetos foram aprovados, nem quais estão no pipeline (na fila para aprovação), nem quais são os critérios de aprovação e as condições dos empréstimos. E mais: o NBD, ao invés de empurrar os “velhos” bancos para uma agenda mais socioambientalmente sustentável, tem feito com que estes flexibilizem seus critérios para emprestar. Como se não bastasse, o NBD recém celebrou acordos de cooperação com o Banco Mundial e com o maior banco privado da Índia, o ICICI, para assessoramento nas áreas de gestão de risco e análise de projetos, entre outros. Ou seja, o NBD ao invés de instituir práticas públicas inovadoras de transparência, prestação de contas e participação social está se associando à tudo que tem de mais retrógrado. Parece um filme de terror, onde as mocinhas e os mocinhos viram bandidos!

O cenário não é alvissareiro, pois os atuais governantes do BRICS cada vez mais se distanciam de sistemas políticos minimamente democráticos. O Brasil acabou de passar por um golpe institucional. Na África do Sul, na Índia e na Rússia crescem as medidas neoliberais e a perseguição e criminalização de organizações e movimentos sociais. E o governo chinês, como é sabido, pouco se interessa em saber o que seu povo pensa. A Índia é o exemplo mais emblemático de um crescimento sem redistribuição. Apesar de sucessivas taxas invejáveis de crescimento de sua econômica nos últimos anos, o abismo social permanece imenso. Segundo o Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen e seu colaborador Jean Drèze[5], somente cinco países no mundo (Afeganistão, Camboja, Haiti, Myanmar e Paquistão) apresentam taxas de mortalidade infantil piores que as da Índia. E mais: nenhum país, nem mesmo na África, tem índices de desnutrição (baixo peso) menor do que o indiano. O Brasil segue o mesmo caminho – pior, pois a economia está em recessão. As propostas do atual governo são as de cortar gastos, especialmente nas políticas de trabalho e renda, previdência social, assistência social, saúde e educação. Isso no momento em que o desemprego cresce e a renda do trabalho cai. E mais: a ideia é congelar as despesas públicas por 20 anos!

Que podemos esperar do NBD com esses governos?

Diversas iniciativas de organizações e movimentos sociais dos países integrantes do BRICS e de outros países vêm buscando denunciar essa estratégia por meio de cúpulas paralelas às cúpulas oficiais, elaboração de declarações, envio de correspondências para os governos, apresentação de proposta de criação do Fórum da Sociedade Civil dos BRICS e do Fórum Sindical dos BRICS, entre outras. Se nada mudar, a atual estratégia do Novo Banco de Desenvolvimento contribuirá para aumentar as desigualdades; diretamente em função das ações do Banco, e indiretamente pelos seus impactos nas demais instituições financeiras que deverão abaixar seus padrões para enfrentar a concorrência do NBD e poder continuar emprestando.

Agora, mais do que nunca, nós, organizações e movimentos sociais preocupados com os destinos dos que mais sofrem, temos que nos unir para lutar e recuperar a ideia original, de termos uma instituição que efetivamente impulsione um desenvolvimento sociombientalmente justo, inclusivo e participativo. As Cúpulas dos Povos são os locci privilegiados para travar esses debates – este ano, data e local já estão definidos: dias 13 e 14 de outubro em Goa, na Índia, às vésperas da Cúpula oficial do BRICS.

[2] http://cic.nyu.edu/blog/global-development/role-brics-changing-global-governance-case-study-post-2015-development

[3] A esse respeito veja: http://www.ndb.int/pdf/ndb-interim-information-disclosure-policy-201607.pdf

[4] A esse respeito veja: http://ndb.int

[5] A esse respeito ver: http://www.outlookindia.com/magazine/story/putting-growth-in-its-place/278843

Categoria: Artigo
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