Ser menina é (e sempre foi) muito perigoso no Brasil

15/01/2020, às 11:51 (atualizado em 28/01/2020, às 14:40) | Tempo estimado de leitura: 6 min
Por Márcia Acioli, assessora política do Inesc
Notícias mais recentes sobre meninas estupradas e executadas por facções criminosas no Ceará escancaram a violência aceita culturalmente desde que o Brasil é Brasil.

Estupro coletivo não é novidade do século 21, não é novidade no país. No Brasil colônia, o estupro era prática cotidiana compreendida como direito por senhores de escravos que violentavam diuturnamente negras e indígenas. O estupro que deu origem à mestiçagem brasileira foi ignorado por muito tempo e a mistura de raças foi amplamente difundida como  fruto de uma cordialidade do povo brasileiro. Cordialidade esta revestida com muito sangue e lágrimas.

Prática comum no cangaço, as meninas, assim como mulheres e idosas, eram alvo de uma macheza covarde, brutal e bestial. Arrancadas de casa ainda meninas (até crianças), eram violentadas até o limite que seus corpos suportavam, não raras vezes por muitos homens, como narra Adriana Negreiros no livro Maria Bonita, Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço (2018).

Assim como o estupro coletivo não é recente, também não é fenômeno que podemos localizar somente no campo de uma direita misógina. Refazendo o caminho da Coluna Prestes, Eliana Brum, jornalista e escritora, registra histórias de estupro, saques, assassinatos e tortura – em entrevista a Antônio Abujamra em 2013.

Morte decretada via Facebook

A mais nova modalidade de violência contra meninas de que se tem notícia no Brasil é a execução de adolescentes no Ceará anunciada nas mídias sociais por meio de falsos perfis. Facções criminosas, por um motivo ou outro, decretam pelo Facebook quem deve ser eliminada. As meninas são arrancadas de casa, torturadas com requintes de crueldade e depois brutalmente assassinadas após estupros coletivos.

Percebe-se, portanto, que o estupro é uma prática aceita culturalmente desde que o Brasil é Brasil. A prática perpetua-se por gerações de tal modo que a violência chega a ser invisibilizada por sua naturalização. Há, no mínimo, uma permissão silenciosa; um encorajamento coletivo com inúmeros episódios ‘autorizados’ ou cometidos por juízes, parlamentares e outras autoridades públicas, como prefeitos, médicos e professores. Os exemplos são muitos.

Em comum, nota-se uma desqualificação das mulheres/meninas com termos que remetem à sua sexualidade e ao desejo. Hipócritas, “homens de Deus” as desejam e as desprezam e violentam-nas com suas consciências tranquilas.

A violência contra meninas ganha novos contornos e elementos como uso das redes sociais e o envolvimento do crime organizado, além da desqualificação das mulheres em discursos e pronunciamentos oficiais. “Não estupro você, porque você não merece”, disse o então deputado federal Jair Bolsonaro, hoje presidente da república, como se tal violência pudesse ser admitida em alguma circunstância.

Confusão entre Estado e religião agrava violência

Segundo a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, conhecida por exaltar o sexismo, na ilha do Marajó meninas são estupradas porque não usam calcinha. Sem qualquer preocupação em analisar a complexidade do problema, responsabiliza as próprias vítimas pelo estupro. Nesse sentido, a estratégia para enfrentar o problema pode ser reduzida ao fornecimento de peças íntimas às crianças e os agressores saem ilesos. Já na ONU, na Comissão de Direitos Humanos, o discurso da ministra se restringiu a uma fala genérica pela perspectiva moral e religiosa, se alinhando aos países mais conservadores do mundo e negando todos os tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

A confusão entre Estado e religião sempre prioriza pautas de costumes e de controle dos corpos femininos. Evita uma abordagem direta sobre os problemas, portanto, não se age sobre as causas e a tendência é o agravamento das violências.

Pesquisas mostram que o assassinato de meninas tem crescido vertiginosamente no país. Dados do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA), instituído pela Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (AL-CE) – relatório de 2018 – revela que homicídio de meninas cresceu mais de 400% em Fortaleza.

Diante de problemas de tal gravidade é imprescindível que se reúna esforços para prevenir violências, responsabilizar agressores, acolher e cuidar das vítimas. Para isso, se faz urgente determinação política para se estudar as violências e elaborar plano de enfrentamento com um desenho complexo abarcando toda a sociedade brasileira, especialmente as políticas públicas. Todos os segmentos da sociedade devem ser envolvidos para coibir a violência do estupro e a morte por violência, em especial de crianças e adolescentes que têm tido suas vidas exterminadas pela violência. Crianças e adolescentes negras, moradoras das periferias têm suas vidas ameaçadas diariamente.

Todas as vidas importam, vidas negras importam, vidas de meninas importam. O alerta foi dado.

Categoria: Artigo
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