Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU: flagrante de rebaixamento dos Direitos Humanos

11/05/2015, às 14:30 | Tempo estimado de leitura: 8 min
Artigo de Iara Pietricovsky, membro do Colegiado de Gestão do Inesc.

Ainda que fragilizada e desacreditada, a Organização das Nações Unidas (ONU) tem sido palco de dezenas de importantes debates da agenda internacional. Não é para menos, na medida em que as crises de guerra e paz aniquilam enormes contingentes humanos e impactam uma variedade de territórios. E também as crises ambiental e climática, que destroem povos, culturas e biodiversidade, alterando os ciclos das chuvas, intensidade das águas e rios, aquecimento dos mares, poluição dos fundos dos mares e outros. Sem falar da crise de financiamento ao desenvolvimento e a negligência geral que recai sobre os países mais ricos. Todos estes temas, sem exceção, são tratados na ONU em suas diversas conferências e infindáveis negociações, e têm relação direta com a vida de cada habitante deste planeta.

Neste contexto queria ater-me a uma pequena parte desse debate, que é o processo de elaboração dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), definidos durante a Conferência Rio+20, em 2012. As Nações Unidas propuseram um conjunto de Objetivos e metas, e esses indicadores estão sendo construídos no âmbito de uma Comissão especialmente criada para tal. Esses indicadores deverão orientar as políticas nacionais e as atividades de cooperação internacional nos próximos quinze anos, sucedendo os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Chegou-se a uma proposta que contém 17 Objetivos e 169 metas. As temáticas são diversas, coerentemente com a diversidade de problemas que devem ser enfrentados por todos os países. Confira a íntegra da proposta de ODS.

Mas não há tempo para ingenuidade. Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, como foram os do Milênio, são uma redução grosseira de todo o marco dos Direitos Humanos. Os Objetivos do Milênio inauguraram essa lógica. Além disso, o que vemos hoje são objetivos e metas entranhados por uma lógica que fere ao princípio interdependência e não hierarquização dos direitos. Que fere também o Art. 2 da Convenção dos Direitos Econômicos, Culturais e Sociais (DHESC), que obriga os países aplicarem o máximo de recursos disponíveis, progressivamente e sem discriminação, na realização dos direitos. A realização e efetivação dos direitos por parte dos poderes públicos deve ser escrita em suas políticas públicas e contar com financiamento interno e externo para essa efetivação. Para tanto, o debate para o financiamento ao desenvolvimento é fundamental e essencial para responder o quanto os objetivos, serão críveis. Isso é verdade também para o debate de mudança climática, no âmbito da COP 21.

Ninguém questiona a importância de se estabelecer Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Entretanto, existe uma tendência de super estimá-los, e assim concentrar-nos demasiadamente sobre os mesmos. Isso acaba obstruindo a capacidade de construir um avaliação mais ampla da realidade. Muitas vezes acabamos vítimas de nossa própria maneira de agir, aceitando agenda que nos é apresentada e aceitando as regras estabelecidas de participação. Existe uma certa domesticação das organizações que orbitam em torno destes debates.

Infelizmente temos hoje uma crença de que só o mercado e o sistema financeiro em parceria com os Estados, via Parceria Público Privada (PPP) poderão resolver o desafio da sustentabilidade. O que temos, na verdade, é o triste reconhecimento da falência dos Estados na promoção e realização dos direitos humanos e dos direitos civis, políticos, econômicos, culturais, sociais, ambientais e sexuais. Em outras palavras, estamos assistindo ao rebaixamento total do marco dos direitos humanos no mundo, com o consentimento e promoção da ONU.

Outro ponto importante que deve ser observado pela sociedade civil organizada e movimentos sociais são as horas intermináveis de acompanhamento dos debates de plenário, conversas em grupos de trabalho, bilaterais, permissão para falas breves (três minutos no plenário) que muitas vezes não são sequer ouvidas ou, as vezes, nem incluídas ao documentos oficial. Vozes que pairam no ar sem eco ou escuta. Existe um problema sério de reconhecimento das vozes da sociedade civil organizada dentro da ONU, e isso é sério porque questiona a estrutura democrática da instituição.

O Co-Coordenador de Negociações Intergovernamental concordou, após esforço concentrado das organizações da sociedade civil organizada, em mandar uma carta para a Comissão de Estatística da ONU pedindo maior abertura para a participação das mesmas neste processo. Não existe ainda nenhuma certeza se isso acontecerá, mas se aceito, haverá um espaço importante para influenciar as decisões desta Comissão. Com isso, a sociedade civil deverá discutir como vai acompanhar, se de forma mais ativa, se como observadora ou por meio de documentos para serem considerados pela referida comissão. Cada uma destas hipóteses terá consequências reais na qualidade da participação. Para sociedade civil a implicação será trabalhar mais qualitativamente e em um espaço mais assertivo, dentro do processo.

Esse parece ser o momento mais difícil e crucial da agenda dos ODS. Sabemos que a Comissão de Estatística da ONU usa critérios técnicos e científicos para argumentar que somente 1/3 das metas propostas será passível de mensuração e que indicadores falhos do ponto de vista do teste científico não terão valor. Isso, deverá ser, de fato, um grande tema do debate e já existem propostas de ampliação dos prazos diante das dificuldades. Por isso é importante que a sociedade civil organizada se habilite para apresentar propostas de indicadores e questionar algumas das atuais opções técnicas, pois as dimensões da questão social e cultural são difíceis de comporem indicadores quantitativos.

Temos vários problemas neste universo dos debates da ONU, em especial dos ODS: falta de transparência, processos pouco democráticos (ainda que sejamos entupidos de consultas digitais), pífia participação dos reais impactados e uma sociedade civil relegada à periferia do debate, sem conseguir ter o peso e a voz necessária para alterar a correlação de forças. Mas não temos medo de encarar o tamanho do problema, porque estamos num cenário de crescente perda de direitos e de avanço conservador no mundo.

Categoria: Artigo
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